Filosofia e espiritualidade em S. António de Lisboa
«A vertente filosófica dos Sermões
de Santo António terá de ser encarada à luz do conceito de filosofia cristã,
que tem por condição base a aceitação da verdade da revelação, recebida pela
fé, constituindo-se esta em fundo doutrinal comum às diversas vias que, ao
longo do período medieval, procuraram reflectir a mesma verdade religiosa mediante
diferentes perspectivas. Trata-se, em todo o caso, de um conceito que extravasa
os limites comummente impostos à filosofia tecnicamente considerada, na medida
em que se verifica o que E. Gilson chamou um uso apostólico da filosofia que é chamada a colaborar, pela via
da razão, na obra da salvação, no pressuposto essencial de que a razão filosofa
em íntima articulação com a fé, nesta reconhecendo a autoridade plena da
revelação. Em última como em primeira análise, a razão que filosofa sustenta
ela própria a convicção de que é razoável,
para o homem, a submissão da sua inteligência, limitada e finita, perante a
razão divina, infinita e ilimitada, nela reconhecendo, através da palavra
revelada, uma garantia contra a falsidade e contra o erro, reconhecimento que
ao invés de constituir uma desqualificação da razão para aqueles que a viveram,
é, sobretudo, a sua sublimação, no âmbito de um Absoluto que a funda e que
se situa para além dos seus próprios limites. O problema não se circunscreve
tão-só e apenas ao dilema tensional razão / fé. A ratio medieval situa-se no campo ilimitado onde confluem o finito e
o infinito, definindo-se, como propõe Maria Cândida Pacheco, como tentativa de abarcar a totalidade da
vida do espírito, tanto no plano da salvação como no plano dos saberes
diversificados, no horizonte englobante da sabedoria.
Em Santo António este aspecto é bem patente no elogio que sem cessar tece
à simplicidade dos que apenas crêem: Crê
apenas e basta. Não está em teu poder desatar a correia do calçado. O que quer
sondar a majestade, diz Salomão, será oprimido pela sua glória. Portanto,
acreditemos firmemente e confessemos com simplicidade, proclama o Santo
no Sermão do Segundo Domingo da Quaresma.
Todavia, não se verifica a exclusão da razão que, para lá da crença, procura
compreender, pelos meios de que dispõe. Se a fé ocupa o primeiro momento,
trata-se também de saber qual o conteúdo da revelação acreditada, abrindo-se a
processos de conteúdo cada vez mais racional o que prefigurará um período de
transição que anuncia a escolástica emergente. Mas este processo de intelecção,
bem como o elogio da simplicidade dos que apenas crêem, faz-se sempre no quadro
de uma das linhas de força da espiritualidade cristã e franciscana: a exaltação
da humildade, que em Santo António será tematizada em íntima articulação com o
ideal da pobreza. De facto, a humildade era, entre as virtudes, aquela que
parecendo mais rebaixar o homem, mais o eleva, situando-se nos antípodas da
soberba e da altiva autonomia dos eruditos. Veja-se a propósito o seu Sermão do Domingo na oitava da Páscoa,
onde escreve: o menino recém-nascido,
no étimo latino, significa o que ainda não sabe falar, o que não fala. Os fiéis
da Igreja, gerados pela água e pelo Espírito Santo, devem ser meninos, isto é,
que não falam a língua do Egipto. Dela escreve Isaías: O Senhor secará a
língua do mar do Egipto. A língua
designa a eloquência; o mal a sabedoria filosófica; o Egipto, o mundo. o
senhor, pois, seca a língua do mar do Egipto quando mostra, por meio dos
simples e idiotas, ser muda e insípida a eloquência e a sabedoria do mundo.
As palavras do Santo português lembram as de S. Francisco que de forma
explícita se proclamara ignorans et
idiota num culto acentuado das virtudes da simplicidade, da humildade e da
pobreza, dizendo, em consonância, Santo António que aquele que mais confia na ciência que nos socorros da graça não faz
senão aumentar seu mal. É sabido, no entanto, o modo como Santo António
procurou abrir-se às ciências profanas, mas o que importa sublinhar é que essa
mesma abertura não se faz sem Deus ou contra Ele. O saber da filosofia ou as
armas da eloquência não constituíam fins em si próprios, mas meios cuja
importância anteviu no plano mais vasto da salvação. A eloquência não se
poderia confinar ao culto pagão da forma, porque a linguagem, tal como em Santo
Agostinho, mais não era do que um sistema de signos, úteis e necessários para a
comunicação do pensamento, mas sem valor intrínseco. A esta luz, a retórica
seria um meio e não um fim para a cultura e para a vida. Se transformada em
finalidade em si própria, mais não seria do que uma forma vã, nela ecoando
certamente a antiga e incisiva condenação de Platão. Também a filosofia que
Deus cala, a que se refere no seu texto acima transcrito, é a sabedoria do mundo. Ora, para
Santo António, o mundo é muitas vezes anteposto, nos seus sermões, ao Ser, ou
seja, a Deus. A identificação entre Ser e Deus é muito clara, e nele se vê todo
o bem como se fora o centro de uma circunferência de onde emana, em linha
recta, para a periferia, tudo o que é verdadeiramente bom». In Pedro
Calafate, Metamorfoses da Palavra, Estudos sobre o pensamento português e
brasileiro, Temas Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1998.
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