Pedro, Inês e a Fonte dos Amores
«(…) Na penúltima, reproduzida na obra de Vieira Natividade, e que é
precedida de outras três cenas de luta violenta entre a sacrificada e o
assassino (ou os assassinos) vê-se um homem que violentamente puxa para
trás a cabeça dela, caída de joelhos. E segurando-a pelos cabelos a destronca
ou antes já acabou de a decapitar, visto que a cabeça está separada no chão. Lá
é sem cepo portanto, mas por um algoz que se realiza o acto. O sagaz e
engenhoso intérprete dos túmulos considera essas representações todas, e as que
constituem a orla superior do sarcófago de Pedro,
como executadas entre 1356 e 1367 e inspiradas ou impostas
ao escultor pela vontade suprema daquele que é autor principal dessa tragédia
de amor. Por isso mesmo como documento histórico fidedigno. E embora eu pense
em geral que a mão do artista nunca se cinge aos factos materiais com rigor
absoluto (a arte é livre; estiliza e idealiza, eliminando o desnecessário,
concentrando e aproximando o essencial, tanto no tempo como no espaço, afim de
enfatizar assim), nem tão-pouco a do historiador, e em particular não possa
esquecer que Pedro era muito capaz de
sacros-perjúrios, concordo quanto à eloquência realista dessa cena sangrenta,
na fé de que o reinante não a teria admitido se não fosse verídica na essência.
Agora (1924) a interpretação histórica da rosácea e da legenda Até a fim do Mundo foi substituída por
outra simbólica por Reinaldo dos Santos no interessante estudo (a Iconografia dos Túmulos de Alcobaça) que
publicou na Lusitânia. Lendo AE Fim
do Mundo e tomando A por princípio, refere essa híbrida e
improbabilíssima fórmula de A e Fim ao ciclo da vida na terra ou à
instabilidade das coisas na terra, ilustrada por episódios do Grande Desvairo. Hipótese que não me
parece provável. É tudo? Sim,
tudo quanto de verdadeiramente documental
e do século XIV está por ora patente aos nossos olhos. Talvez existam
contudo pormenores inéditos na Crónica Geral do tempo de João I que
pertence à Academia das Ciências de Lisboa ou na redacção diversa da mesma que
existe na Biblioteca Nacional de Paris, e outrora fazia parte da livraria do
Condestável Pedro, filho do Regente. Possível é mesmo que no
texto castelhano, também inédito, que é original de ambos e representa uma refundição
da Cronica
General de España que fora aumentada em 1344, já figure a Estorea de Enês tal qual os antigos logo
a escreveram e Fernão Lopes a aproveitou na sua Crónica de Afonso IV,
desaparecida, quer propositadamente, quer por descuido.
NOTA: Quanto às Crónicas portuguesas, consulte-se o utilíssimo estudo de
Jaime Cortesão, Do Sigilo Nacional sobre
os descobrimentos, publicado na Lusitânia, I. Em todas as suas obras Fernão
Lopes refere-se amiúde àquilo que os
antigos notaram em escrito.
Estorea que, mutatis mutantis, literariamente
emparelharia com a de NunÁlvares, a do Infante
Santo e até certo ponto com a Lenda de Santa Isabel. Mas, conforme
já deixei expresso na Saudade Portuguesa, aquelas Crónicas
estão por explorar. O Romance castelhano
da Degolada, inspirado pela lenda de Inês,
que hoje principia Donde vas, el
caballero? Onde vas triste de
ti? Tão vivo na memória dos Castelhanos que, modificado, o aplicaram em
1878 ao amor profundo do rei Afonso
XVII pela Rainha D. Mercedes, romance que no século XVII Velez Guevara
introduzira no seu drama inesiano Reinar después de morir, e por isso tratado
sem hesitar de Romance de Inês de Castro por diversos estrangeiros, claro que
não o devemos contar entre os documentos conquanto seja antigo e tradicional. Escuso
de acrescentar que investigadores conscienciosos da história de Inês, como Ribeiro Vasconcelos e
Sanchez Moguel, acreditam na Degolação.
Poetas cultos que se lembraram de Pedro
e Inês, esses imitaram a cortesia e discrição dos historiadores. Só vaga e impessoalmente
assentaram que deram a morte a Inês,
ou que a mataram cruamente». In Carolina
Michaelis de Vasconcelos, Artigo publicado na Revista Lusitânia, volume II,
compilado em Dispersos, Originais Portugueses, I Vária (1º volume), Lisboa,
Edições Ocidente, 1969.
Cortesia de E. Ocidente/JDACT