domingo, 17 de novembro de 2013

Se Isto é Um Homem. Primo Levi. Tradução de Simonetta Neto. «Na noite de 13 de Dezembro de 1943, Primo Levi, um jovem químico membro da resistência, é detido pelas forças alemãs. Tendo confessado a sua ascendência judaica, é deportado para Auschwitz em Fevereiro do ano seguinte…»

jdact

A Viagem
«(…) São poucos os homens que sabem enfrentar a morte com dignidade e, em muitos casos, não são aqueles que se esperava. Poucos sabem calar-se e respeitar o silêncio dos outros. O nosso sono inquieto era frequentemente interrompido por brigas barulhentas e fúteis, por imprecações, por pontapés e socos desferidos ao acaso como se fossem uma defesa contra contactos molestos e inevitáveis. Então, alguém acendia a lúgubre chama de uma vela, que permitia ver, prosternado no chão, um fervilhar fosco, uma massa humana confusa e contínua, tórpida e dorida, sacudida por inesperadas convulsões imediatamente apagadas pelo cansaço. Através das barras, viam-se nomes conhecidos e desconhecidos de cidades austríacas, Salzburgo, Viena; a seguir checas, finalmente polacas. Na noite do quarto dia, o frio tornou-se intenso: o comboio percorria intermináveis pinhais negros, subindo de forma perceptível. A neve estava alta. Devia tratar-se de uma linha secundária, as estações eram pequenas e quase desertas. Já ninguém tentava, durante as paragens, comunicar com o mundo exterior: agora, sentíamos que estávamos do outro lado. Houve uma longa paragem em campo aberto, depois a marcha recomeçou com extrema lentidão, até que o comboio parou, em plena noite, no meio de uma planície escura e silenciosa.
Viam-se, de ambos os lados dos carris, filas de luzes brancas e vermelhas, a perder de vista; mas nada daquele barulho confuso que anuncia de longe os sítios habitados. À luz escassa da última vela, cessado o ritmo dos carris, calado qualquer som humano, esperámos que algo acontecesse. Ao meu lado, cerrada como eu entre um corpo e outro, ficara durante toda a viagem uma mulher. Conhecíamo-nos há muitos anos, e a desgraça colhera-nos juntos, mas pouco sabíamos um do outro. Dissemos então, na hora da decisão, coisas que não se dizem entre os vivos. Despedimo-nos, sem demora; cada um se despediu do outro como se se despedisse da vida. Já não tínhamos medo.
O desfecho surgiu de repente. A porta foi aberta estrondosamente; na escuridão, ecoaram ordens estrangeiras e os bárbaros latidos dos alemães quando dão ordens, que parecem libertar uma raiva velha de muitos séculos. Apareceu-nos um amplo cais iluminado por holofotes. Pouco mais adiante, uma fita de camiões. Depois, tudo ficou de novo em silêncio. Alguém traduziu: tínhamos de descer com as bagagens e depositá-las ao longo do comboio. Num instante, o cais fervilhou de sombras: mas receávamos romper aquele silêncio, todos se atarefavam em volta das bagagens, procuravam-se, chamavam-se uns aos outros, mas timidamente, a meia-voz. Uma dezena de SS mantinha-se à distância, com ar indiferente, as pernas afastadas. A determinada altura, meteram-se entre nós e, em voz baixa, os rostos de pedra, começaram a interrogar-nos rapidamente, um a um, num mau italiano. Não interrogavam todos, só alguns. Quantos anos? Saudável ou doente?, e conforme a resposta indicavam-nos duas direcções diferentes.

Se isto é um homem
[…]
Considerai se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome
sem mais força para recordar
vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
[…]

Tudo era silencioso como num aquário e como em certas cenas dos sonhos. Esperávamos algo de mais apocalíptico: pareciam simples agentes da ordem. Era desconcertante e desarmante. Alguém ousou perguntar acerca das bagagens: responderam bagagens depois; outros não queriam deixar a mulher: disseram depois de novo juntos; muitas mães não queriam separar-se dos filhos: disseram muito bem, ficar com filho. Sempre com a calma segurança de quem está a cumprir apenas a sua tarefa de cada dia; mas Renzo demorou um instante mais a despedir-se de Francesca, que era a sua noiva, e então, com um único soco em pleno rosto, deitaram-no ao chão; era a sua tarefa (maldita) de cada dia». In Primo Levi, Se Questo è um Uomo, Einaudi, Turim, 1958, Se Isto é um Homem, 1998, Tradução de Simonetta Neto, 10ª edição, 2013, Teorema, ISBN 978-972-695-945-8.

Cortesia de Teorema/JDACT