A Viagem
«(…) São poucos os homens que sabem enfrentar a
morte com dignidade e, em muitos casos, não são aqueles que se esperava. Poucos
sabem calar-se e respeitar o silêncio dos outros. O nosso sono inquieto era
frequentemente interrompido por brigas barulhentas e fúteis, por imprecações,
por pontapés e socos desferidos ao acaso como se fossem uma defesa contra
contactos molestos e inevitáveis. Então, alguém acendia a lúgubre chama de uma
vela, que permitia ver, prosternado no chão, um fervilhar fosco, uma massa
humana confusa e contínua, tórpida e dorida, sacudida por inesperadas
convulsões imediatamente apagadas pelo cansaço. Através das barras, viam-se
nomes conhecidos e desconhecidos de cidades austríacas, Salzburgo, Viena; a
seguir checas, finalmente polacas. Na noite do quarto dia, o frio tornou-se
intenso: o comboio percorria intermináveis pinhais negros, subindo de forma
perceptível. A neve estava alta. Devia tratar-se de uma linha secundária, as
estações eram pequenas e quase desertas. Já ninguém tentava, durante as
paragens, comunicar com o mundo exterior: agora, sentíamos que estávamos do outro lado. Houve
uma longa paragem em campo aberto, depois a marcha recomeçou com extrema
lentidão, até que o comboio parou, em plena noite, no meio de uma planície
escura e silenciosa.
Viam-se, de ambos os lados dos carris, filas de
luzes brancas e vermelhas, a perder de vista; mas nada daquele barulho confuso
que anuncia de longe os sítios habitados. À luz escassa da última vela, cessado
o ritmo dos carris, calado qualquer som humano, esperámos que algo acontecesse.
Ao meu lado, cerrada como eu entre um corpo e outro, ficara durante toda a
viagem uma mulher. Conhecíamo-nos há muitos anos, e a desgraça colhera-nos
juntos, mas pouco sabíamos um do outro. Dissemos então, na hora da decisão,
coisas que não se dizem entre os vivos. Despedimo-nos, sem demora; cada um se
despediu do outro como se se despedisse da vida. Já não tínhamos medo.
O desfecho surgiu de repente. A porta foi aberta
estrondosamente; na escuridão, ecoaram ordens estrangeiras e os bárbaros
latidos dos alemães quando dão ordens, que parecem libertar uma raiva velha de muitos
séculos. Apareceu-nos um amplo cais iluminado por holofotes. Pouco mais
adiante, uma fita de camiões. Depois, tudo ficou de novo em silêncio. Alguém
traduziu: tínhamos de descer com as bagagens e depositá-las ao longo do
comboio. Num instante, o cais fervilhou de sombras: mas receávamos romper
aquele silêncio, todos se atarefavam em volta das bagagens, procuravam-se,
chamavam-se uns aos outros, mas timidamente, a meia-voz. Uma dezena de SS
mantinha-se à distância, com ar indiferente, as pernas afastadas. A determinada
altura, meteram-se entre nós e, em voz baixa, os rostos de pedra, começaram a
interrogar-nos rapidamente, um a um, num mau italiano. Não interrogavam todos,
só alguns. Quantos anos? Saudável ou
doente?, e conforme a resposta indicavam-nos duas direcções diferentes.
Se isto é um homem
[…]
Considerai se
isto é uma mulher,
sem cabelos e
sem nome
sem mais
força para recordar
vazios os
olhos e frio o regaço
Como uma rã
no Inverno.
[…]
Tudo era silencioso como num aquário e como em certas cenas dos sonhos.
Esperávamos algo de mais apocalíptico: pareciam simples agentes da ordem. Era
desconcertante e desarmante. Alguém ousou perguntar acerca das bagagens:
responderam bagagens depois; outros
não queriam deixar a mulher: disseram depois
de novo juntos; muitas mães não queriam separar-se dos filhos: disseram
muito bem, ficar com filho.
Sempre com a calma segurança de quem está a cumprir apenas a sua tarefa de cada
dia; mas Renzo demorou um instante mais a despedir-se de Francesca, que era a
sua noiva, e então, com um único soco em pleno rosto, deitaram-no ao chão; era
a sua tarefa (maldita) de cada dia». In Primo Levi, Se Questo è um Uomo, Einaudi,
Turim, 1958, Se Isto é um Homem, 1998, Tradução de Simonetta Neto, 10ª edição,
2013, Teorema, ISBN 978-972-695-945-8.
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