“Dou por seguro o seguinte: a
peça há-de levar outra demão”
Experiências de Duplo e de Além Mundo em Pascoaes
«(…) Falta lá tanta malha, que não me atrevo a considerar as
tinturas actuais senão um acto de abertura. Se entretanto eu não regressar do
passeio, o que pode muito bem acontecer, alguém tomará em mãos o pincel por mim.
A ponte entre estes dois mundos é quase inexistente; só a
reminiscência, a memória residual que toda a sombra tem no fundo de si da luz
exterior de que parece ser a última projecção, cria uma ténue linha de passagem
entre as ideias e as sombras, o interior e o exterior da caverna. Em Sohravardi
em vez de duas realidades antagónicas, há pelo menos três realidades em jogo: as
ideias, as imagens e as coisas. A alma não chega directamente do mundo das
ideias, do extra-mundo se assim posso dizer, mas do mundo das imagens, que está
intimamente referido ao das ideias mas dele se distingue por uma corporeidade
subtil. É um plano intermédio, um entre-mundos, por contraponto ao extra-mundo
das ideias e ao intra-mundo da matéria, um plano que tanto participa pela
encarnação na realidade sensível das coisas como pelo duplo, que nunca abandona
o plano subtil das imagens, na realidade luminosa das ideias. Tomo agora o
livro de Teixeira de Pascoaes, Duplo Passeio.
Logo no título encontro a ideia de duplo ou de desdobramento, que me
puxa à lembrança tanto, até por dentro da obra de Pascoaes, em primeiro
lugar essas sombras do livro de 1907,
que abro agora e onde deparo ao acaso com estes versos, quarta estrofe do poema
A
Sombra do Passado: Sou como vós,
ó árvores! A sonhar, / desço aos seios da Noite, a ver se encontro / algum veio
de luz, onde matar / esta sede infinita em que me abraso! / (..) / Ai, tendes
fome e sedes! Assim eu / tenho sede de luz. E depois, ainda ao acaso,
estes, no poema Além Mundo: (..) além
desta carne contingente, / que nos cobre estes ossos de miséria, / outra existe,
mais bela e transcendente, / para onde foge e emigra a nossa alma. Nestes quatro
versos deparo com o desdobramento da realidade material tal como o encontro em
Platão e nas glosas platónicas que se lhe seguiram; é aquilo que o sujeito
chama de outra carne, nem contingente
nem miserável, e que por sua vez não anda longe da segunda consciência elaborada por Freud. Uma nota: esta outra carne diz respeito à totalidade do
mundo natural, a tudo o que existe em matéria, da pedra ao homem, da bactéria à
mulher, da formiga à criança, e não apenas à esfera humana.
O antropomorfismo não tem aqui lugar; seria irrisório ver sob este aspecto
o homem separado da natureza. Por isso o sujeito destes versos pode gritar que
é árvore. E por isso em poema da mesma época, publicado em Vida Etérea (1906),
A Uma Ovelha, o sujeito foi capaz
de ver num animal de rebanho um ser faminto
dessa relva que enverdece / os outeiros e os vales do Outro Mundo. Essa
ovelha mostra que todo o corpo corruptível recebe um sopro alienígena, uma alma
incorpórea; qualquer corpo material, do mais ínfimo ao maior, é uma sombra
projectada por uma ideia. Tudo na Terra reflecte o seu arqueu ordenador; tudo
na Terra se projecta no infinito; tudo na Terra tem uma alma e aspira a entrar
em contacto com a parte dela que não encarnou. A anima mundi é terrena e não apenas humana. O tópico do sujeito como
árvore, com raízes, leva-me à primeira citação, na qual muito me toca a acção
aí referida, sonhar. Dito doutro
modo, o sujeito é como uma árvore mas só quando sonha, pois sonhar é fazer da
noite um húmus onde se bebe a luz. Se levar adiante o raciocínio obtenho: o dia,
sem sonho, traz o corpo material e a noite, com o sonho, traz a alma ou a segunda consciência de que fala Freud.
O veio de luz que o ser a sonhar
procura é o extra-mundo platónico. Convém perguntar: mas porquê a sonhar? Com certeza porque o sonho faz
pate daquele órgão da alma encarnada que a põe em contacto com o lugar de
origem». In António Cândido Franco, Notas para a Compreensão do Surrealismo em
Portugal, Lisboa, Peniche, Évora, Editora Licorne, 2012, ISBN 978-972-8661-90-8.
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