Pode-se assim dizer
que do tempo nada se perde porque o passado é presente no presente; ou melhor,
o presente não é senão o passado agindo. In
Farias de Brito, O mundo interior.
«Quais são os
sentimentos, valores e aspirações que emergem quando nos voltamos sobre o nosso vivido mais remoto?
Experiência comum aos indivíduos da espécie humana, a vivência da infância só
se tornou tema literário com a modernidade. Em À la recherche du temps perdu, como sabemos, o tema foi
celebrizado por Proust. Em língua portuguesa, não são poucos os
escritores que esse caminho percorreram. Por exemplo, António Nobre
assume a memória sob a forma do lirismo: Mas,
hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância, / que me enchiam de Lua o
coração, outrora, / partiram e no Céu evolam-se, à distância!. Há várias
possibilidades de trabalhar o tema. Casimiro Abreu, expressão do
romantismo brasileiro, fala da dor inerente à consciência da transitoriedade e da
finitude: Oh! Que saudades que tenho / da
aurora da minha vida / da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais!.
Mais recentemente, Dante Milano fala do próprio tempo interno da
consciência: Tempo, vais para trás ou
para diante? / O passado carrega a minha vida/ Para trás e eu de mim fiquei
distante, / ou existir é uma contínua ida / e eu me persigo nunca me
alcançando? / A hora da despedida é a da partida.
Cumpre entender, como Agostinho
e outros filósofos depois dele, e a exemplo de Bergson e de Husserl,
que o tempo da consciência é um fluxo contínuo, uma correnteza em que pulsam
simultaneamente o que foi, o que é e o que está vindo a ser. Daí o sentido da
memória como modo de presença do que não mais existe; de coisas e de factos
vividos que, embora pertencentes ao passado, fazem parte (tanto quanto o fazem
as coisas e factos previstos, sonhados, planeados ou apenas imaginados, e que
ainda não existem) do mundo real que experimentamos actualmente. Neste
sentido, e considerando o contexto da colonização angolana, pretendemos
descortinar a vivência da infância de Luandino Vieira, expressa nos contos de A cidade e a infância, nas
estórias de Luuanda e
no romance João Vêncio: os
seus amores, como sendo a fonte e o verdadeiro motor de sua criação literária.
A memória como filão
Tenho minhas minas
para garimpar. In Luandino
Numa entrevista ao
jornal O Globo (17.11.2007), do Rio de Janeiro, Luandino Vieira afirmou
que escrever sobre as barreiras de classes e as injustiças é uma opção
comprometida com a sua própria vida, pois
essas preocupações constituem uma espécie de aquário onde nadam as minhas
memórias. Luandino definiu a si mesmo como um escritor que encontrou na memória
o seu filão, a sua mina; uma espécie de mineiro do tempo interno da
consciência:
Minha ficção sempre se
alimentou da memória. É do que se inscreveu na memória que retiro o material
que submeto a todos os maus-tratos possíveis até perceber se é válido para
justificar meu trabalho sobre ele. Da actualidade conheço pouco. Mas revela-se-me
permanente e com persistência o que em minhas memórias de mais de meio século
se inscreveu, e não apaga. Tenho minhas minas para garimpar.
Cabe, então, perceber
melhor quais são estas memórias no percurso da vida de José Vieira Mateus
Graça, conhecido por Luandino Vieira. Em outra
entrevista, ainda no Rio de Janeiro, ele explicou que o pseudónimo exprime o
que foi a progressiva incorporação do seu ser no lugar:
Aos onze anos, eu tinha
um jornalzinho manuscrito, e neste jornal eu era o redactor e era o tipógrafo:
a minha caligrafia é que constituía o tipo. Eu fazia também uns desenhos para
ilustrar as crónicas de futebol, e nestes desenhos eu assinava como Luandino. E
também, porque me chamavam de Luandino, devido a minha mania de defender a
cidade de Luanda acima de tudo.
De família pobre, Luandino nasceu em Portugal, a 4 de
Maio de 1935. Três anos depois, a
família foi viver para Angola, colónia portuguesa, onde ele passou a infância e
a adolescência». In Adriana
Mello Guimarães, Luandino Vieira, O Mineiro
Angolano da Memória, Artigos e Ensaios, Revista Crioula, nº 3, 2008.
Cortesia de Revista Crioula/JDACT