terça-feira, 5 de novembro de 2013

Rumor Branco. Almeida Faria. «… viviam presas as rolas presas dum velho senhor que os comia quando queria na sua indiferença à dor viviam tristes as rolas porque não tinham amor até o ar não sabia à liberdade anterior vivem contentes as rolas morreu o velho senhor e o sol que as alumia é o sol libertador»

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I Fragmento
«(…) Depois o filme te prendeu. Rocco conta que na Lucânia quando qualquer casa é construída o dono atira uma pedra ao primeiro que passar porque a felicidade exige sacrifício. Isto lembra Rocco desejando seu pequeno pobre paraíso da infância entre olivais para onde há-de voltar se deusquiser com o irmão mais novo em cujo futuro o princípio da esperança encontra um último refúgio. Ao intervalo quase nem falaste com Regina e Pedro que deixaste no bar tomando dois cafés enquanto divagavas pelo átrio e sacada do balcão. Qando estavas ao alto das escadas Pedro e Regina vieram ter contigo e tu os vias em picada de cima com olhos de cinema primeiro em plano geral ainda no meio da assistência depois plano de conjunto grande e logo plano de meio conjunto em seguida plano de pé depois americano cortados os actores pelos joelhos depois plano de tronco a partir da cintura logo plano de peito aproximado seguidamente plano vasto até que as caras se chegaram num grande plano ao nível das gargantas e finalmente mentalmente filmaste em plano de detalhe os lábios de Regina que fechavam-abriam sem que entendesses bem o que diziam. À saída Pedro acompanhou Regina e tu foste a pé para tua casa em direcção à Alameda.
Subiste a escada abriste a porta Graça estava deitada. Hesitaste em acender a luz mas acendeste e acordaste-a. Ela pronunciou somente o teu nome: Daniel João que tarde chegaste. Propuseste então para seres perdoado: vamos lá a ver se és capaz de dizer dez vezes sem descansar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar.

II Fragmento
Na pejada noite de mistérios surdos ele avançava rápido sem pressa e aquelas azinheiras de silêncio, aqueles ecos de vozes, voos, saltos animais, aquele tremor leve de estrelas, tudo ali lhe infundia respeito em vez de medo, em lugar de ansiedade, espanto, enquanto a cada movimento decidido dos seus pés havia folhas esmagadas, imperceptíveis sobressaltos e, porque a noite a isso convidava, via com lúcida claridade o que haviam sido para ele os tempos últimos e o que poderia vir a ser o futuro e via sobretudo ter de ter com ela uma atitude, fulgor de luzes no rossio esverdeado aquialém pelas raras árvores e apesar da noite quente um vento vinha inda-bem-não pelas filas de barracas alinhadas onde gente passava passeava olhando as montras frágeis dos feirantes as tendas de tiro e jogos e os comes e bebes cheios de fedor a fumo de farturas quando ele chegou e falou aos pais dela, a mãe desagradada porque lhe não beijou a mão, mas com seu hábito de salões sorriu polidamente e quando ele perguntou à rapariga se queria dar uma volta ela respondeu sim antes de pedir licença aos pais que claro concordaram, o pai Custódio com indiferença pois não se preocupava com caprichos, quando fosse para casar interviria, a mãe indecisa, que ele era um rapaz esperto, diziam, quase doutor ainda por cima e ela sempre tivera admiração desmedida pelos doutores, isto é, pelos médicos que a tratavam e lhe aturavam maleitas imaginárias e Maria da Pureza foi com ele e mal se afastaram agarrou-lhe o braço com desprezo pelos preconceitos dos patrícios mas não podiam conversar nesse chinfrim: Todos ao último espectáculo são apenas cem centavos terminou a viagem nova corrida este foi o triste fado da mulher assassinada pelo marido enciumado, e Maria da Pureza parecia contente, desviava os cabelos caídos para a cara enquanto escutavam homens que cantavam, os braços por cima do ombro uns dos outros, o corpo embalado nos cantes descantes que rezavam que viviam presas as rolas presas dum velho senhor que os comia quando queria na sua indiferença à dor viviam tristes as rolas porque não tinham amor até o ar não sabia à liberdade anterior vivem contentes as rolas morreu o velho senhor e o sol que as alumia é o sol libertador, e o taberneiro pequeno e gordo, a cabeça minúscula desmiolada curta bolota sobre a abóbora do ventre vasto, arrancando-lhes coroas por trás do sujo tasco, pois, tinha de ter com ela uma atitude, clara como o atalho que trilhava na noite hermética, povoada de bichos que espiavam seus passos por entre rasteiras moitas de estevas e de carqueja e interrogava-se qual poderia ser o seu caminho e entre os múltiplos dispersos despistados destinos permanecia indeciso». In Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0746-1.

Cortesia de Caminho/JDACT