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A graça e a alegria da estória
A estória não quer
ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às
vezes, quer-se um pouco parecida à anedota. In João Guimarães Rosa, Tutaméia, Aletria e Hermenêutica
«O livro Luuanda (1963) é constituído por três estórias.
Aqui Luandino
inova no uso da língua, criando uma linguagem que, embora não seja o português
falado nos musseques em Luanda, tem esta marca. Das três estórias do livro, Vavó
Xixi e seu Neto Zeca Santos, Estória do Ladrão e do Papagaio,
Estória da Galinha e do Ovo, analisaremos a terceira. O enredo se
desenvolve em torno da luta por um ovo que pode ser visto como um símbolo que
representa a identidade dos habitantes de um musseque. Neste texto a infância
surge na figura de duas crianças que traduzem a fala da natureza, neste
caso a galinha. A estória começa na hora das quatro horas, quando
começa a confusão entre duas vizinhas. Nga Zefa tem uma galinha, Cabíri,
que insiste em ir alimentar-se no quintal de Nga Bina, uma personagem que,
grávida, tem o grande desejo de comer um ovo. Levada pelo desejo, Nga Bina alimenta
a galinha, que finalmente põe um ovo em seu quintal. As vizinhas discutem. Uma
reclama o direito à propriedade da galinha e do ovo; a outra requisita o
direito ao ovo enquanto produto da alimentação fornecida em seu quintal. Sem
solução à vista, solicitam a mediação da mais velha do grupo, Vavó Bebeca.
Nada se resolve; as mulheres, de forma a decidir o caso, pedem ajuda a várias
pessoas: a um negociante branco, Sô Zé, que só quer tirar vantagem; ao
inteligente seminarista João Pedro; a Sô Vitalino, que explora os pobres
mediante o aluguer de cubatas; ao Artur
Lemos, ex-notário e bêbado, símbolo da burocracia e da decadência do sistema.
Todos tentam conseguir a propriedade do ovo.
Entretanto, duas
crianças, Beto e Xico, entram em cena, aproximam-se da galinha e, em seguida,
afirmam que aprenderam a língua das galinhas. Finalmente, aparece a autoridade
policial, e um sargento diz que por não serem autorizadas reuniões com mais
de duas pessoas, ele terá de ficar com a galinha e com o ovo da discórdia.
Duas são, basicamente, as possibilidades de solução do problema: ou as duas mulheres
mantêm o litígio e nenhuma das duas leva o ovo, ou elas se unem para defender o
seu direito ao ovo. Neste momento de tensão, as duas crianças, Beto e Xico
começam a utilizar a língua das galinhas e imitam um galo
a chamar pela Cabíri:
Até a Cabíri deixou de se mexer, só a cabeça virava em todos os lados,
revirando os olhos a procurar no meio do vento esse cantar conhecido que lhe
chamava (…) E, então, sucedeu: Cabíri espetou com força as unhas dela no braço
do sargento, arranhou fundo, fez toda a força nas asas, e as pessoas, batendo
palmas, uatobando e rindo, fazendo pouco, viram a gorda galinha sair a voar por
cima do quintal, direita e leve, com depressa, parecia era ainda um pássaro de
voar todas as horas.
A solução, a saída (isto é, a libertação) se dá,
evidentemente, pela união dos oprimidos. De facto, Luandino chama a atenção
para a necessidade da existência de uma consciência crítica:
O papel de um escritor em qualquer sociedade é ser, realmente, a consciência
crítica dessa sociedade (…) Portanto, a consciência crítica seria uma
consciência que aponta os erros, as dificuldades, os defeitos; tudo quanto, na
realidade, deve ser transformado para melhor.
Mas uma significação política da estória, pura e simples, configuraria
apenas uma retórica ideológica; seria uma percepção superficial da dimensão
estética da narrativa luandina, porque essa consciência é sempre uma conquista,
e começa pela visão crítica de si mesmo como actor da História. Essa
consciência outra coisa não é senão o saber contar a própria história como uma
anedota, reinventando-a. Ora, isto não é possível sem uma apropriação da linguagem.
O sentido da verdadeira libertação
consiste exactamente nisso: o inventar, dentro da História, a própria história,
com todos os recursos, com todas as novidades e particularidades que constituem
a graça e a alegria anedótica da estória, sem o que não seria uma tarefa suportável.
É o recuperar, urbano, de uma estória tradicional, passada com outros animais.
Ou seja: mais uma vez o escritor vai buscar, na memória, as tradições herdadas
para consolidar a sua obra singular». In
Adriana Mello Guimarães,
Luandino Vieira, O Mineiro Angolano da Memória, Artigos e Ensaios, Revista
Crioula, nº 3, 2008.
Cortesia de Revista Crioula/JDACT