A duquesa e Joana d'Arc
«(…) Filipe, o Bom,
imediatamente informado, deslocou-se sem perda de tempo de Coudun, onde se
encontrava, para a ver. Teve uma entrevista com Joana mas o seu conteúdo não
foi registado por Monstrelet, todavia presente. O duque tratou de mandar distribuir
circulares anunciando a formidável captura, combatendo a crença na missão celeste da libertadora de Orleães. Antes
que os borgonheses se deixassem tentar por eventuais propostas dos ingleses, as
autoridades eclesiásticas forçaram a Universidade de Paris e o vigário geral da
Inquisição (maldita), o irmão Martin, a
pedir, e mesmo a exigir por requisição, que a rebelde lhes fosse entregue. O
poder eclesiástico pretendia a todo o preço instaurar-lhe um processo por vários crimes indiciando heresia
para salvar a França de um tal perigo. Fizeram a diligência por achar que ela
encarnava o Anticristo, figura imaginária que derivava do comércio sexual com o
diabo e de que era suspeita, a seu ver, pelo facto de só vestir roupas de
homem. Os eclesiásticos começaram a investigar o passado de Joana antes de
poderem examiná-la fisicamente, com vista a extraírem conclusões sobre a sua
virgindade ou a presença, nela, de estigmas particulares.
Detida pelo bastardo de Wamdonne, Joana ficou prisioneira dos senhores
borgonheses, dependentes de João de Luxemburgo, fiel ao duque Filipe e também
conselheiro do rei inglês Henrique VI, que a mantiveram prisioneira
sucessivamente em Beaulieu-lès-Fontaines, Beaurevoir, Arras e Le Crotoy (Saint-Valéry).
Num estudo minucioso sobre estas repelentes negociações relativas à sorte de
Joana, Jacques Prévost-Bouré conta que, assim que a Pucelle foi enclausurada
na torre ameada do castelo de Beaurevoir, perto de Cambrai, até ao pagamento do
resgate, a esposa e a irmã de João de Luxemburgo, habitantes do castelo,
levaram-lhe muito consolo secundando a firme protecção acordada por Joana de
Luxemburgo, condessa de Ligny, sua tia, senhora dessas terras. Esta condessa,
de quem João de Luxemburgo era o herdeiro, continuava leal ao rei de França
assim como o seu outro sobrinho, Pedro de Luxemburgo e, para proteger a Pucelle,
fez-lhe oferta de vestes de mulher pensando assim desviar a obstinação dos
teólogos e da Inquisição (maldita), que a
acusavam de diabolismo e heresia. Foi por isso que, ao partir para Avinhão onde
viria a morrer a 18 de Setembro, recomendou ao sobrinho que não entregasse a Pucelle
aos ingleses.
O bispo Cauchon evitou encontrar-se com a condessa e, depois da morte
desta, pôde convencer, com importante resgate, equivalente ao que se daria por
um rei, João de Luxemburgo, ele mesmo já na dependência dos ingleses. Envia
então um correio a Malines a informar de tudo isto o duque Filipe, que tinha
regressado à Flandres para combater revoltas e por Philippe de Brabante estar
perante a morte (4 de Agosto de 1430). A braços com outras inquietações,
como a de ter perdido muitas peças de artilharia nas bastilhas abandonadas em volta
de Compiègne, o duque Filipe pôs-se igualmente de lado para não descontentar o
rei. Todavia, Carlos VII, que Joana havia apoiado em Orleães, manteve a sua
passividade e, estranhamente, não se manifestou. O regente Bedfort, irmão de
Henrique V, que dirigia os interesses ingleses na menoridade de Henrique VI,
acabou por se apossar da célebre prisioneira, num golpe de Judas, em troca da
tentadora soma de 10 000 escudos em ouro. Serviu-se da astúcia do bispo Pierre
Cauchon como intermediário desta sórdida negociação. Estabilizada a prisão de
Joana em Ruão, aí lhe farão um processo viciado, a fim de justificar o crime: a sua condenação à fogueira. A
violência da justiça senhorial, dominante na época, não evitou que se
suscitasse por parte do povo uma inegável simpatia pela valorosa Pucelle,
vítima da crueldade provocada pelas ambições dos grandes senhores dos dois
lados da Mancha.
Por falta de documentos não sabemos exactamente
como viveu a duquesa esta tragédia, que teve lugar, como referimos, nos
primeiros meses após a sua chegada à Flandres. A exemplo das senhoras de
Luxemburgo, podemos acertar, com alguma imaginação, a simpatia que a figura da
jovem iluminada terá despertado no coração de Isabel. Alfredo Gândara (1896-
1972), jornalista nacionalista e espiritualista português, é autor de uma
brochura sobre a duquesa na qual transpõe para Isabel a sua própria crença em
Joana d'Arc enquanto mensageira do divino, fazendo, desta forma, tábua rasa dos
documentos ao afirmar que a duquesa Isabel a visitou em Noyon e que,
impressionada pela Pucelle, trabalhou para romper o entendimento dos borgonheses
com os ingleses. Esta história foi esquecida tal como as ideias irracionais do
seu autor. Sabemos que Isabel acompanhou o duque Filipe quando ele dirigiu a
campanha militar em que as suas tropas cercaram Compiègne; residindo, de resto,
em Péronne de onde, a 7 de Junho de 1430,
saiu para Noyon (Picardia), aí ficando até 11 de Agosto, antes da sua viagem
para o Norte, a fim de estar em Lille a 22 de Agosto e em Bruxelas a 28. Ora,
depois da sua prisão, a 23 de Maio, nos arredores de Compiègne, Joana
d'Arc esteve encarcerada em Beaulieu-lès-Fontaines, a dois passos de
Noyon. Mas o cronista Monstrelet, que acompanhava Filipe, o Bom, não reporta qualquer contacto entre as duas mulheres». In
Daniel Lacerda, Isabelle de Portugal – duchesse de Bourgogne, Éditions Lanore,
2008, Isabel de Portugal, Duquesa de Borgonha, Uma Mulher de Poder no coração
da Europa Medieval, tradução de Júlio Conrado, Editorial Presença, Lisboa,
2010, ISBN 978-972-23-4374-9.
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