O Dodelat-sis
«(…) Pouco depois de Teodoro ter saído do hospital, uma empregada irá lavar
a mancha de sangue e esfregar um resto de miolos que ficou por cima da cama do
moribundo assassinado. Será essa mesma empregada que irá repor a placa com o
número 69 no seu suporte. E que assim, de pernas para o ar julgar-se-ia haver,
erradamente, duas camas número 96 nesta enfermaria. Falando e escrevendo com sinceridade, não era fundamental que se
contasse nada disto.
Ora viva! Conhece lá o Autor
Oxalá daqui a uns meses esteja a chover a cântaros, não haja mesmo nada
para fazer e esta ideia que tiveste, a de ler este livro, compense o estado de
ânimo em que tens andado. Para já, só para te incomodar, convém dizer que está
um radioso dia de sol eles estão ao ar livre e parecem despreocupados. Morde-te
de inveja! Bom, talvez não estejas a perceber... Quem são eles? Mortos,
feridos, perseguições, tiros, intrigas, sexo, corrupção, amor, sentimentos! De
tudo isto existe, em abundância, nesta história. Mas exige-se desde o início um
pouco de decoro. Por isso... O Autor apresenta-se agora, justifica-se já,
desculpa-se pelos Narradores que não escolheu, antes se lhe impuseram como
pequenas pulgas em cão velho e vadio. Os Narradores que, inevitavelmente, o
substituirão por vários EU, equívocos e suspeitos, irritantes, daqui a algumas
páginas, idealmente seria no segundo capítulo, não sabemos se o Autor ficará
impune se subverter os sistemas, estão acolá, muito calmos.
O Autor aproveita a pausa e define-se, por questões de princípio e
comedida elegância. E foge, desde já, com a mesma elegância e sobretudo com
muita modéstia, às responsabilidades, e tantas são possíveis de lhe imputarem
mais tarde (a começar por ti, Leitor). Assim mesmo, a responsabilidade
é, segundo safa atempada do Autor, inteira, dos Narradores. São eles que,
ditatorialmente, narram. O Autor, modernista, mais não faz do que melhorar-lhes
sintagmas verbais e nominais, apimentando aqui e floreando acolá, dando-lhes estilo,
exactamente estilo, aquilo que Georges Buffon definiu como a ordem e o
movimento que conferimos aos seus/nossos pensamentos. Isso, obviamente, não te
interessa para nada, Leitor. Mas faz falta aos Narradores e sobretudo aos
Homens e Mulheres da Lupa (comunidade sinistra que se esconde pelos cantos e
lê os livros como tu, Leitor, nunca o farias). Os Narradores não nascem nem
ensinados nem dotados de agilidade vocabular à altura das exigências
narrativas. Já imaginaste um Narrador que se te dirigisse num estilo... Fostes, viestes? Hoje vi um grupo que
estavam?. Pois é, Leitor. Literatura não é jornalismo, fica sabendo.
Para que os Narradores se saiam airosamente, mesmo que mais tarde, por
esturpo e narcisismo, editem a sua própria versão da História em formato livro
de bolso e assinem, (tudo é possível!), um êxito editorial (qualquer
edição que venda três mil e um exemplares é já um best-seller), eles aqui dependem do Autor. Os Autores, injustamente
ignorados, são entidades mais omniscientes e mais omnipotentes do que quaisquer
Narradores. Pelo menos, antes de conhecerem o Editor. Numa perspectiva de
assumida democraticidade textual, o Autor respeita os Narradores. A bem da
justiça e da optimização da narrativa, todavia, acha-se o Autor no direito de puni-los
sempre que lhe aprouver. Sente-se mesmo no dever de calá-los. De cortar-lhes o
pio, mesmo que, os Autores são assumidamente emotivos, isso doa».
In Alexandre Honrado, A Montanha Russa de Deus, Editorial Bizâncio,
2001, ISBN 972-53-0114-5.
Cortesia de E. Bizâncio/JDACT