terça-feira, 26 de novembro de 2013

Joana. A Louca. Rainha Joana I de Espanha. Linda Carlino. «… personalidade desta mulher de inteligência arguta e sentimentos nobres, que a fez resistir à traição por parte dos que lhe eram mais próximos e lhe valeu, injustamente, o epíteto de ‘Louca’»

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«(…) Não se lembrava de como ali chegara, mas encontrava-se sozinha no seu quarto. Assim que ouviu a porta fechar-se, abandonou-se ao desespero absoluto. Deixou-se cair no chão, chorando e soluçando, até gastar todas as lágrimas e toda a sua energia, deixando-se ali ficar, extenuada. Maria fora instalada no quarto contíguo, de onde escutava com tristeza. Sabia como a sua senhora ficara ferida com os cruéis acontecimentos do dia e lamentava-o profundamente. - Por tudo o que há de mais sagrado, que se passa aqui? Compreendi que algo não estava bem logo no início e foi por isso que mandei os soldados atrasarem a sua formação, na esperança de que, passado algum tempo, a chegada de mais nobres fizesse crescer aquele miserável grupo de secretários da cidade. Mas não, não arranjaram melhor que uns quantos padres, uma mão-cheia de cavalheiros e damas e a princesa Margarida, vociferou, furioso. - Pelos céus, sei de gente mais inferior que foi mais bem recebida. - Não foi certamente a recepção que esperávamos, concordou Maria. - E onde é que, em nome dos céus, está Filipe? Que jogo está ele a jogar? A sua obrigação é estar aqui, aqui mesmo, neste preciso momento! Como se atreve a mostrar um desrespeito tão flagrante depois de lhe ter alimentado as esperanças? Sei muito bem o que me apetecia fazer ao canalha.

Mas na manhã seguinte chegaram cartas de longe. Lá dentro, as palavras haviam sido escritas a tinta, mas por fora firmavam-se em sangue. Diziam que o seu Rolando morrera numa caçada em Roncesvalles.

Maria contemplou a ama, que descansava, pálida, sobre as almofadas do seu leito de doente. - Foi por causa do poema, inquiriu num tom mais brusco do que tencionara, ou o quarto arrefeceu mais rapidamente do que é habitual? Seja por que for, vou guardar o livro e chamar alguém para acender o lume. Chega de histórias melancólicas; precisamos é de mais calor. A sério, Senhora, não sei porque insistis em vos pordes triste com estes contos deprimentes. Já estais suficientemente triste. Se eu fosse vossa mãe, nunca teria permitido que tais livros chegassem às vossas mãos. Maria deixara de se dirigir à ama e resmungava agora contra o mundo. Moveu-se pelo quarto, escondendo o livro ofensivo e indo à porta chamar alguém que viesse acender o lume. Depois, voltou para junto do leito a fim de apaparicar a doente. Deu laços nas largas fitas vermelhas que apertavam o pescoço e os punhos da camisa de noite de Joana e endireitou-lhe a touca branca e o xaile vermelho. Em seguida, afofou as almofadas e alisou a coberta de pele, sentando-se depois junto ao leito. Um criado chegou, pressuroso, para tratar da lareira, pondo mais toros no lume, que ajeitou e arrastou, causando súbitos estalidos e uma chuva de ruidosas faúlhas vermelhas e amarelas. Depois de ele sair, o quarto ficou em silêncio, com a excepção do crepitar da lareira, do tiquetaque do relógio e do som da chuva, que um caprichoso vento outonal atirava contra as janelas.
A corte real dos príncipes era tão magnífica como o seu nome sugeria. Os aposentos de Joana eram magníficos, deixando todos boquiabertos e o quarto de dormir não constituía excepção. Para além de quente e confortável, era luxuoso e ela nunca vira nada assim. Das paredes pendiam sumptuosas tapeçarias que mostravam cavaleiros lendários que regressavam, triunfantes, de diversos feitos de valor. Todas as peças de mobiliário eram profusamente trabalhadas; as mesas ostentavam jarras, taças e estatuetas da mais fina porcelana. O elemento decorativo mais espectacular era o relógio de ouro sobre a cornija da lareira. Tinha a forma de um castelo. Estandartes dourados esvoaçavam dos cimos das torres e do telhado. Alguns cavaleiros descansavam indolentemente, apoiados nos escudos e outros guardavam a entrada. Das janelas debruçavam-se belas damas, cujos detalhes minúsculos eram requintadíssimos. Quando Joana entrara pela primeira vez naquele quarto, alguns dias antes, ficara espantada com o seu esplendor, admirando todos os pormenores com gritinhos deliciados. Todavia, o frio intenso apagara-lhe essa alegria. - Sinto-me tão infeliz! Quero ir para casa. Maria, nunca vivi tantos dias cinzentos e chuvosos; não admira que esteja doente. Creio que ainda tenho febre. Oh, aqui é tudo tão diferente e tão confuso. Sinto-me tão perdida e sozinha. - Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas que ela deixou correr pelas faces». In Linda Carlino, “That Other Joana”, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.

Cortesia de E. Presença/JDACT