Vidas são Vidas
«A convalescença de Pedro foi demorada. Chegara com os dois pulmões
afectados. Os novos medicamentos que para o seu caso então se experimentavam,
ainda não haviam provado suficientemente. Pelo menos, no entender do Dr. Laje.
O Dr. Laje não era inclinado a novidades. Há tanto ano em Azurara, se em vários
aspectos da sua personalidade sempre soubera defender uma quase feroz
independência, pouco a pouco, e subtilmente, se deixara penetrar noutros de
esse pendor provinciano para em tudo ir pelo
seguro. Decerto o achariam atrasado, contaminado de espírito rotineiro, os
jovens médicos da capital. Acabavam de se especializar lá fora, ou pelo menos, assinavam as mais modernas revistas da
especialidade. Decerto o achariam atrasado, e alguma razão teriam. O que,
porém, salvava o Dr. Laje, era não só a sua longa experiência, tão
inteligentemente aproveitada, como o seu imperturbável bom senso. O repouso, a
boa alimentação, a despreocupação, os ares puros, alguns fortificantes, eis no
que principalmente esperava o nosso Dr. Laje para a cura de Pedro. Com a
ajuda de Deus dizia Angelina há-de se curar. E o Dr. Laje: Com a ajuda da Madre Natureza!
De facto, na sua própria natureza parecia estar a melhor defesa de
Pedro. Admirava o Dr. Laje como pudera um homem de tão robusta constituição, na
força da vida, ter chegado ao miserável estado em que o trouxera Lelito. Entre
os dois, Pedro e o Dr. Laje, se estabelecera quase desde logo aquela corrente
afectiva que pode ser profunda, quando recíproca, entre um doente e o seu
médico. Muito naturalmente, pois, se fora Pedro confiando ao seu novo amigo.
Embora por episódios e fragmentos, aos poucos lhe dera conta de toda a sua
vida. Uma breve infância familiar logo perturbada; aqueles belos anos do
colégio, (para ele belos anos!) em que fora o mais amado e singular dos
chefes, e eis os tempos felizes da vida de Pedro. Não tardara que a roda da
Fortuna desandasse. A Morte e a Falência lhe vieram bater cedo à porta. O pai
morreu novo, deixando a mulher e o filho desamparados. Dera-lhes uma vida fácil;
mas nunca esperara morrer tão cedo, nem era homem para se preocupar demasiado
com o futuro. Bem jovem, pois, se vira Pedro com o sustento da mãe a seu cargo,
sem poder levar para diante os estudos iniciados. Não tinha aquele feitio
calculista, ambicioso, acomodatício e ao mesmo tempo empreendedor, que a certos
indivíduos eleva do nada à riqueza, à celebridade ou popularidade, às
superiores camadas sociais e mundanas. Se julgara poder conquistar com relativa
facilidade uma certa mediania decente, (e bem mais alto voavam os seus primeiros
sonhos!) breve se desenganou; como já desses primeiros sonhos se
desenganara.
Para explicador de estudantes, que foi o que primeiro tentou, estava
mal preparado. Nunca chegara ele próprio a ser bom estudante. Numa vida de
contínuas aflições prementes, impossível preparar-se agora melhor. Raros
explicandos lhe apareciam. Os que lhe apareciam, eram geralmente dos que mal
podem pagar. Os que pagavam, conseguidos por intermédio de antigos amigos categorizados,
não demoravam muito a ver que lhes não seria difícil, pelo mesmo dinheiro,
arranjar explicador mais competente. Baixara os preços; mas baixar os preços é
depreciar a mercadoria. Conhecera várias formas de ser despedido. Já às
primeiras palavras falsamente amáveis, mais ou menos constrangidas, acompanhadas
de sorrisos amarelos e às vezes uma familiar pancadinha no ombro, no braço,
compreendia que da mais vulgar maneira estavam dispensando os seus bons
serviços. Também no jornalismo falhara. Ah, bem Pedro sabia que poderia dar um
cronista original, um cintilante repórter! Com a sua fantasia, a sua
vivacidade, o seu faro, o seu poder de observação (que passaria a cultivar),
não iria longe? Mas ficara
perto. Para se revelar e vencer, e para vencer não teria senão que se revelar,
faltaram-lhe as necessárias oportunidades. Talvez, também, a persistência que
muitas vezes acaba por se impor. Dificílima, aliás, tal persistência a quem
vive sob a preocupação angustiosa da renda do cubículo, do pão de cada amanhã,
dos remédios duma pobre mulher precocemente envelhecida, já condenada.
Além de tudo isto, redigia penosamente. Falando naturalmente bem, e até
com invenção e brilho, sentia-se emperrado e tímido quando se punha a escrever.
Teria de se apurar, de se treinar..., que vagar havia para treinos? Quando havia, era pior: estava desempregado.
E então lhe faltava paciência e disposição de espírito. Demais, Pedro
Sarapintado era por natureza inquieto, melindroso, volúvel. Qualquer afinidade
tinha o seu temperamento com o dos artistas e boémios. Natural, pois, que se
lembrasse dos seus talentos de actor, já revelados no colégio. Aos seus talentos
de actor chegara também a recorrer. Que
papéis conseguira? Os proventos que de aí lhe advinham, não lhe
permitiriam esperar a hora da vitória. Não há dúvida, a urgência quotidiana de
dinheiro é um grande embaraço para quem mal o ganha. Um círculo vicioso anda
aqui subentendido, dentro do qual todo o movimento do indivíduo apanhado se
reduz a rotação. Actividade, não faltava a Pedro. Seria bem orientada? Teria ele uma habilidade correspondente aos seus talentos?
E alguma vez o tornara a favorecer a caprichosa Fortuna, alguma vez se
arrependera de lhe ter voltado costas?
Auxílio da parte dos camaradas, se tivera a ingenuidade de o esperar, logo se
desiludira: Todos os actores operam juntos no teatro, e se dão a mão no palco;
mas o que há entre esses pobres seres vaidosos, ciumentos, atormentados, cabotinos
e ansiosos de publicidade, é uma luta mesquinhamente feroz. Isto foi, pelo menos,
o que pareceu a Pedro... e sem ter ele a sorte de encontrar uma das inevitáveis
excepções. (Tem de haver excepções!)
pensava». In José Régio, A Velha Casa, Vidas são Vidas, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, Lisboa, 2003, ISBN 972-27-1258-6.
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