A Questão
«(…) Os primeiros a serem contemplados pelas obras da Cruzada São Sebastião residiam nos casebres de duas favelas
contíguas situadas às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, a Praia do Pinto
e a Ilha das Dragas, de onde sairiam, a partir de 1957, para morar no recém construído Bairro São Sebastião do Leblon. O terreno sobre o qual foram
erguidos os prédios pertencia à União, e foram cedidos pelo então presidente
Café Filho após acordo definido com Dom Helder Câmara. Composto por dez
prédios, com sete andares cada e sem elevadores, o Bairro abrigaria 916 famílias
em apartamentos conjugados com cozinha e banheiro, de 18m2, ou com sala, cozinha,
banheiro e um ou dois quartos numa área de, respectivamente, 24 e 36 metros quadrados.
O terceiro conjunto foi construído já no início dos anos 1970 no terreno anteriormente ocupado pelos casebres da favela da
Praia do Pinto, logo após esta ter sido definitivamente extinta, em 1969, por um incêndio sobre o qual
pesam diferentes versões. O Projecto Praia do Pinto, nome com que foi registado
por uma autarquia da Secretaria de Planeamento do Estado da Guanabara,
contemplaria 40 prédios de 13 a 17 andares, com 2.251 apartamentos, dispostos
em quatro pequenas ruas terminadas, em cul-de-sac, numa praça central. Cada
unidade teria entre 90 e 100 metros quadrados, divididos em sala, cozinha,
banheiros e três ou quatro quartos. A estimativa era que a densidade
demográfica do local seria significativamente aumentada para 1.182 habs./ha.,
índice justificado, segundo os autores do projecto, por sua inserção em um
grande vazio demográfico cujo aproveitamento
seria destinado à construção de clubes, praças, supermercados e outros equipamentos
que reduziriam a densidade relativa a 343habs./ha.. A Selva de Pedra,
como ficou conhecido esse imenso conjunto de prédios, viria a ser, enfim, um
dos maiores exemplos desta política pública de renovação urbana, coetânea da política de erradicação de
favelas e beneficiada pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), órgão criado pelo
governo federal, na década de 1960,
para financiar também as obras previstas no âmbito da política de remoções.
Em cada um desses conjuntos encontramos moradores sempre dispostos a contar
e recontar histórias que ressaltam a importância do lugar onde vivem. No Jornalistas,
velhos profissionais gostam de lembrar que aqueles prédios, os primeiros a
serem feitos em toda a orla de Ipanema e Leblon, resultaram do prestígio
que a imprensa gozava junto a Getúlio Vargas. Na Cruzada, como é hoje chamado o Bairro São Sebastião do Leblon, a memória dos moradores
guarda nítida a imagem da favela, das visitas de Dom Helder Câmara e do incêndio
de 1969. Na Selva de Pedra, aqueles com os quais conversamos eram membros
de famílias de militares e vieram transferidos de outros estados da federação.
Suas lembranças são repletas de episódios da mudança, da mobilização ansiosa de
pais e irmãos e da adaptação das rotinas no bairro em que muitos sequer sabiam
correctamente onde se localizava. Memória pessoal e memória social ou, como
denomina Halbwachs, memória autobiográfica e memória histórica se apoiam
mutuamente e, no caso desses relatos, contam a história de um bairro pela óptica
dos dramas vividos por seus moradores para nele permanecerem ou se
estabelecerem. Segundo dados do censo demográfico do IBGE, em 2000 a população
do Leblon era de 46.670 habitantes distribuídos em 18.004 unidades
residenciais, das quais 50% eram ocupadas por até duas pessoas e quase 60% de seus
responsáveis ganhava mais de 15 salários mínimos. Além disso, cerca de 75% dos
responsáveis possuíam curso superior e apenas 967 pessoas não eram
alfabetizadas, sendo que 468 tinham entre cinco e nove anos. O apartamento,
como já podemos supor, é a unidade residencial que predomina no bairro e em
toda a Zona Sul da cidade. No Leblon são 17.447 unidades deste tipo, e, do total
de domicílios, 12.320 são propriedade de seus residentes. A maior parte dos responsáveis
por cada unidade domiciliar tem entre 40 e 69 anos, e o número daqueles com mais
de 70 anos é superior aos que estão entre os 20 e 39 anos. Nesse universo os
2.957 moradores do Bairro São Sebastião são percebidos como uma população de
baixa renda e de baixa escolaridade, constituída maioritariamente por jovens e
negros, exercendo serviços de baixa qualificação e apresentando índices de até 60%
de desemprego. Diferentemente do entorno, o número de netos e bisnetos
residindo junto com o responsável pelo domicílio é significativo. A
preponderante presença de filhos e o baixo índice de cônjuges habitando com o
responsável segue, contudo, as taxas registadas nas demais unidades do Leblon. Estamos
na Zona Sul é constatação frequente quando comparam o Bairro e a sua localização
com as favelas da cidade. Para muitos destes moradores do Leblon, o objecto de comparação
do seu local de moradia continua sendo a favela. E isto resulta de factores que
em nada equivalem à questão da regulamentação fundiária ou outro critério legal
através do qual se tenta definir favela. O Bairro, afinal de contas,
é um conjunto
habitacional, e o termo ocupa lugar bem definido tanto no histórico das
políticas de habitação quanto nas biografias da maioria de seus moradores. O
significado da sentença estamos na Zona Sul não se esgota,
porém, no plano comparativo. Indica ainda os custos de se viver sobre o metro
quadrado mais caro da cidade e o reconhecimento de um estilo de vida
predominante ao qual se deve aderir». In Soraya Silveira Simões, Cruzada São
Sebastião do Leblon. Uma etnografia da moradia e do quotidiano dos habitantes
de um conjunto habitacional na Zona Sul do Rio de Janeiro, Tese de Doutorado em
Antropologia, Universidade Federal Fluminense, ICHF, PPGA, Niterói, Brasil,
2008.
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