A Iniciação egípcia nas fontes clássicas
«(…) Contudo, as semelhanças evidentes nos relatos são notáveis e mostram
claramente que a revelação dos mistérios estava conotada com a celebração de
cerimónias nocturnas. A identificação do neófito com o Sol, como veremos, é
outro detalhe que se detecta igualmente na tradição iniciática egípcia. Seja
como for, é também interessante detectar no texto um profundo vínculo emocional
entre o iniciado e a deusa. De acordo com a narrativa, Lucius permaneceu ainda
alguns dias no santuário, absorto no
prazer inefável de adorar a imagem da deusa, penhorado como estava por um benefício
que jamais poderia pagar. E na iminência de regressar para a sua terra
natal, Lucius entoa uma oração final à deusa:
(...) Veneram-te os deuses do céu
e respeitam-te as subterrâneas potestades; tu fazes rodar o mundo, iluminas a
luz do sol, reinas sobre o universo e calcas o Tártaro a teus pés. Os astros
respondem diante de ti, as estações regressam segundo o teu arbítrio,
alegram-se contigo os deuses, os elementos estão à tua disposição. A um sinal
teu sopram as brisas, avolumam-se as nuvens, germinam as sementes e brotam os
rebentos. Temem a tua majestade as aves que cruzam o céu, as feras que erram
pelos montes, as serpentes que se escondem na terra, os monstros que nadam no
mar.
Embora expressa numa língua estrangeira e povoada por imagens estranhas
ao cosmos nilótico, a descrição da deusa possui um curioso contraponto em hinos
redigidos nos templos greco-romanos do Egipto. Veja-se, por exemplo, o seguinte
hino redigido em hieróglifos nas paredes do templo de Ísis, em Filae, onde o
poder universal da deusa sobre a natureza é também expresso, mas desta vez
recorrendo aos elementos do meio nilótico:
E ela que faz brotar a inundação,
Que faz viver a humanidade e faz
crescer as plantas,
Que garante as oferendas divinas
para os deuses,
E invocações para os espíritos
transfigurados.
Pois ela é a deusa do céu,
O seu consorte é o senhor do
mundo inferior
O seu filho é o senhor da terra,
O seu consorte é a água pura
rejuvenescida
Em Biga de acordo com o seu
ciclo.
Ela é a senhora do céu, da terra
e do mundo inferior
Pois foi ela que os manifestou,
através do que o seu coração concebeu e as suas mãos
criaram.
Ela é o bai que está em cada cidade
Cuida do seu filho Hórus e do seu
irmão Osíris.
Necessariamente helenizado e portanto revestido por uma roupagem capaz de
favorecer a sua assimilação, o culto de Ísis que se espalhou ao longo do
império romano parece ter mantido alguma ligação ao conteúdo original do culto
da deusa egípcia, muito embora seja de esperar que, quanto mais tardio e mais
afastado da fonte maior será
certamente a probabilidade de encontrar misceginações com cultos locais. Esta
misceginação detectada nas fontes escritas torna-se evidente nos testemunhos arqueológicos.
Em Mérida, por exemplo, o culto de Ísis e de Serápis estava intimamente
associado com o culto de Mitra. Noutros casos, porém, o culto isíaco parece
ter-se implantado espontaneamente, sem qualquer aparato cultual formal. Uma inscrição
latina conservada nos muros da Sé catedral de Braga aresta que aí tinha sido
erguido um altar dedicado a Ísis, por Lucrecia Fida, sacerdotisa de Augusto.
As escavações arqueológicas efectuadas na Sé por uma equipa da Universidade do
Minho sugerem que a igreja foi
construída sobre as ruínas de um mercado, o local de onde é provavelmente
originário o altar isíaco. Tratar-se-ia, deste modo, de um culto de cariz
popular inserido no mercado e que, desse modo, revelaria bem o veículo de penetração
do seu culto em Bracara Augusta:
a actividade dos mercadores e marinheiros. Nesta longitude é pouco provável que
o culto de Ísis se revestisse do carácter oficial que possuía nos templos de Roma
e mesmo da Grécia, nem é de supor que algum rito iniciático lhe estivesse
subjacente. Ainda que eventualmente desprovido de um contexto cultual formal, a
difusão do culto prosseguiu movido pelo poder da deusa em tocar tanto os mais
humildes como os poderosos, como é disso ilustrativo o altar dedicado por
Lucrecia Fida». In Rogério Sousa, Iniciação e Mistério no Antigo Egipto, Ésquilo,
Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-56-4.
Cortesia da Ésquilo/JDACT