«(…) Gosto de me roçar brando pelo lume das águas ou cursar forte impelindo
a violência do temporal. Há largo mar por onde correr. Vagas, ondas, ondinhas,
cavo-as, encrispo-as, encrespo-as, encristo-as, adondo-as, amacio-as,
borbulho-as e marulho-as, espraio-as espumantes por areais ocres,
bege-acinzentados. Acende-se a tempestade e em ira as estoiro contra a penedia,
lhes rodopio surbiões de voragem, malícia minha, lhes adoço e amaino fúrias,
bondade minha, por todos os oceanos, rios e lagos do mundo. Gosto de as soprar
e, com elas, as ondas do tempo e os farrapos e cuspinhos das vidas dos mortais.
Vou e venho, a entretecer laços e histórias, enredos entrançados de sucessos,
aqui e acolá, além, agora, ontem, amanhã, que tudo é hoje... Em Portugal soalheiro
e rendido ao inimigo junto ao mar Oceano; nas brumas da Holland, da Nederland,
da Friesland, da Zeeland, o povo aguerrido, espinhado contra o inimigo comum,
nas bordas do mar do Norte. Agora corro a Leipzig,aafiar o ouvido a novas
línguas e falares, como é meu gosto, a vertê-los em português que sempre é
idioma escorreito que corre o mundo como eu, e a divertir-me nas bodas do príncipe
de Orange, Willem de Zwijger, Guilherme o
Taciturno. Casa com Anne, filha de Mauritz eleitor de Saxe. Na comédia da
vida dos homens nasce-se uma vez, morre-se uma vez, mas pode casar-se e descasar-se
várias vezes. Estas são as segundas núpcias do Taciturno, aos vinte e oito anos, e não há-de ficar por aqui.
Anne de Saxe é uma maria-rapaz, soldadesca e arrogante, amiga da sem-vergonhez
e da bebedice, descortês para com os seus e os outros. Foi um engano ter
nascido mulher e foi o casamento do príncipe uma desilusão. No entanto, dessa
aliança vão nascer um filho e duas filhas. Segui-los-ei adiante. Neste momento
passeio-me pelas mesas dos convivas. Sete dias de comezaina e bebezaina. Se os
seis mil duzentos e noventa e dois cavalos comeram treze mil e seiscentas
medidas de aveia, para alimentar os seis mil duzentos e noventa e dois
cavaleiros, muitos deles com suas mulheres e filhos, gastaram-se quatro mil moios
de trigo, beberam-se três mil e seiscentos grandes garrafões de vinho e mil e
seiscentas pipas de cerveja. Dia e noite rodaram em enormes espetos vitelos e
leitões, todos os dias traziam pescadores peixe fresco, monteiros e falcoeiros
peças de caça e volateria, moleiros e caseiros farinha, ovos, méis, para as
guloseimas. Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca
de Deus. Ora aí está o busílis. Os homens apartaram-se em religiões,
seitas, bandos e cada um, do alto dos púlpitos ou das homilias dos altares, se
arroga a palavra de Deus... A boda acabou, os convivas dispersaram-se e aqui
vem, saído do seu castelo de Breda, o jovem estatúder Guilherme de Orange e
Nassau a caminho de Bruxelas, a assistir à assembleia dos cavaleiros
do Tosão de Ouro. Entretanto...
Conheço-me por demais violento às vezes, provoco cataclismos, naufrágios,
desbordamentos de rios das suas madres, aludes e levas de terras que tudo
arrastam, casas, pessoas, sem olhar a piedade, a justiça, à ternura das
crianças, à fraqueza dos velhos, ao êxtase dos amantes. Ainda me recorda
daquela terrível noite de dezoito para dezanove de Novembro, vai mais de um
século volvido. A inundação de Saint Elisabeth, nos arredores de Dordrecht!
Soprei a doze nós, era furacão e aproveitei-me da maré alta do mar do Norte.
Afogaram-se cem mil neerlandeses... Cego me criou a natureza, mas sem culpa. A
violência, porém, dos humanos contra outros humanos supera as minhas iras, se é
que se podem chamar iras, termo da linguagem dos homens, às forças naturais que
me regem. Supera as feras dos bosques, a fome dos peixes das águas. O leão
saciado não mata nem o abutre. Não causa morticínios. Mas os homens espantam-me.
Matam pelo fogo, pela água, pelo ferro, pelo sufoco, por mil e uma invenções de
tortura adrede criadas para prolongar a dor daqueles a que chamam inimigos,
hereges e por aí fora. Com náusea perpasso e assisto à crueldade humana,
tamanho o meu furor. Não. Não esperarei por aquele dia medonho no vale de Josafá.
Não aguardarei o toque das trombetas do Juízo Final. O dia da ira é hoje, é
agora, é já.
A mim, a mim todo o instrumental, toda a orquestração de que sou
maestro, as percussões, os sopros, os dedilhados, o roçar, o deslizar das crinas
dos arcos nas cordas da natureza. Requiem por todas as vítimas, por
todos os mártires sem resplendor na cabeça nem peanha nos altares, sem lugar
reservado pelos doutores de todas as religiões e seitas na luz perpétua dos
paraísos, por aqueles que ousaram pensar de outra maneira e foram amarrados à
pira do fogo, pendurados da forca da ignomínia, estrangulados no garrote,
estirados no potro, afogados na fossa, assados na chapa, degolados no patíbulo,
escorchados vivos». In Fernando Campos, O Lago Azul, Difel, Algés, 2007, ISBN
978-972-29-0874-0.
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