domingo, 24 de novembro de 2013

Narração da Inquisição de Goa. Charles Dellon. «… que os portugueses primeiramente chamaram de S. Lourenço, é uma das maiores do mundo, tendo de circunferência 750 léguas. Está situada, em longitude, desde o grau 8.º, e vai até ao 27.º de latitude meridional»

jdact

Sucinta descrição de Cabo Verde, do cabo da Boa Esperança e da ilha Bourbon
«(…) Dobrámos o cabo da Boa Esperança com bonançoso tempo; este lugar, que é o mais meridional da África, está situado sob o grau 37 º de latitude a sul da linha; os holandeses estão ali estabelecidos desde há muito, e ali edificaram mui formosa fortaleza e uma cidade. O porto é assaz bom, e todas as naus que da Holanda rumam às Índias, ou que das Índias tornam à Holanda, sempre lá param, e em abundância topam com quanto precisam para restaurar a marinhagem e para consertar os estragos que as naus no mar sofreram. As demais nações da Europa vão também amiúde restaurar-se ao cabo da Boa Esperança, que é assim como a metade do caminho da Europa às Índias. Os habitantes deste cabo não são tão negros como os de Cabo Verde, mas nem por isso são mais amáveis nem benignos; religião, não na têm quase nenhuma, e vivem como vagabundos, passam a vida na caça e na pesca, nutrem-se de milho miúdo e não se dão ao trabalho de erguer cidades; aqui se topa toda a sorte de animais ferozes, como na África sobrante, e particularmente grande cópia de rinocerontes.
Como passámos muito ao largo, não pudemos enxergar o dito Cabo, mas continuámos o nosso caminho e fomos aportar à ilha de Madagáscar, que os nossos franceses, desde que nela estão, chamaram ilha Bourbon, situada sob o grau 21º. Bourbon e a ilha Maurícia, que desta só dista 25 léguas e é posse dos holandeses, são as mais sãs e mais agradáveis do mundo, lá se encontra caça de todo o género em abundância, sendo os rios e os pegos mui piscosos, tanto como as costas do mar. Na ilha Bourbon há grande profusão de tartarugas de terra e de mar. São estas últimas de grande valimento nas longas viagens, pois se podem conservar vivas durante obra de dois meses, viradas do avesso e regadas uma vez por dia. As terras são ali tão boas que tudo quanto se lhe deita a semear, nelas cresce em perfeição, e mui leve é o trabalho que elas dão no cultivo; tão sadio é lá o ar, que desde há quarenta anos não há notícia de nenhum francês enfermo, e todos quantos ali aportam com maleitas, em pouco tempo reavêm perfeita saúde, por mais aflitivo que seja o estado em que venham. O porto não é mau, da banda de oriente; chamam os nossos a este retiro país formoso; há ainda uma baía para as bandas do arraial povoado de S. Paulo, porém sem segurança para as naus quando surdem furacões, que de usança despejam ventos em Fevereiro e Março; não se vê por isso quem aborde estas ilhas durante tal estação; no resto do ano, a calmaria reina quase sempre nestes mares, podendo pois a gente abordar e lançar âncora nas suas baías sem receio.
Mal se fincaram as âncoras, levámos a terra os nossos enfermos, e o clima benigno e salutar deste agradável país, a que tantos viajeiros já chamaram Paraíso Terreno, junto aos cuidados que lhes demos para seu refrigério, tão pronto e tão bem os restaurou, que ao cabo de quinze dias nem ar tinham de haver sido enfermos. Sobejamente restaurada toda a marinhagem, após havermos ficado com tantas provisões quantas queríamos, levantámos âncora e demos à vela rumo à ilha Delfina, aonde ditosamente aportámos depois de oito dias de navegação.

Da ilha Delfina, ou de S. Lourenço
Esta ilha, que os nossos franceses nomearam Delfina, e que os portugueses primeiramente chamaram de S. Lourenço (actual ilha da Reunião, descoberta no século XVI por Pedro Mascarenhas, também era conhecida pelo nome desse navegador português), é uma das maiores do mundo, tendo de circunferência 750 léguas. Está situada, em longitude, desde o grau 8.º, e vai até ao 27.º de latitude meridional; de África se diz ser, pois mais vizinha é deste que doutro qualquer continente; em todo o seu redor há diversas ilhas pequenas, como as de Santa Maria, para as bandas da baia de Antongil, e as Mayotte, da banda de Moçambique. Os ingleses por ali passavam amiúde noutros tempos, e haviam até edificado um pequeno povoado na baia de Santo Agostinho, que fica para a banda do grau 25.º sul, e a oeste da ilha. Os holandeses também se demoraram pela baía de Antongil, e desde que deixaram de ali manter oficiais portageiros, não deixaram por isso de lá ir de vez em quando carregar arroz, despachando-o para Batávia, cidade que fica junto de Bantam, na grande ilha de Java, e que é a capital de todas quantas possui a Companhia Holandesa nas Índias». In Charles Dellon (1649-1709?), Relation de L’Inquisition de Goa, 1687, Leyden, Holanda, Narração da Inquisição de Goa, tradução e notas de Miguel Vicente Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866, Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN 972-608-075-4.

Cortesia de E. Antígona/JDACT