sexta-feira, 13 de junho de 2014

A Bibliotecária. Dita Dorachova. Auschwitz. Antonio Iturbe. «Mas como ensinar crianças num brutal campo de extermínio onde tudo é proibido? E ele sorria. Hirsch sorria sempre enigmaticamente, como se soubesse qualquer coisa que os outros ignoravam»

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«Enquanto durou, o Bloco 31 (no campo de extermínio de Auschwitz albergou quinhentas crianças, vários prisioneiros que tinham sido nomeados conselheiro e, apesar de toda a vigilância a que estava sujeito e contra todas as probabilidades, uma biblioteca infantil clandestina. Era minúscula: consistia em apenas oito livros, entre os quais Uma Breve História do Mundo, de H. G. Wells, um livro de texto russo e outro de geometria analítica […] No fim de cada dia, os livros, com outros tesouros, como medicamentos ou alguma comida que houvesse, eram confiados a uma das meninas mais velhas, que tinha o encargo de escondê-los todas as noites num lugar diferente». In Alberto Manguel.

«O que a literatura faz é o mesmo que um fósforo no meio de um campo em plena noite. Um fósforo quase nada ilumina, mas permite-nos ver quanta escuridão há à nossa volta». In William Faulkner.

Auschwitz-Birkenau, Janeiro de 1944
«Esses oficiais que vestem de negro e olham para a morte com a indiferença de coveiros ignoram que sobre o lodo escuro em que tudo se afunda Alfred Hirsch ergueu uma escola. Não sabem, e é preciso que não saibam. Em Auschwitz, a vida humana vale menos que nada; tem tão pouco valor que já nem sequer se fuzila ninguém porque uma bala é mais valiosa do que um homem. Há grandes câmaras onde se usa o gás Zyklon porque reduz os custos e com uma só lata pode matar-se centenas de pessoas. A morte transformou-se numa indústria que só é rentável trabalhando por grosso. No barracão de madeira, as aulas são grupos de pequenos bancos apertados uns contra os outros. Não há paredes e os quadros são invisíveis: os professores traçam no ar, com gestos das mãos, triângulos isósceles, acentos circunflexos e até o curso dos rios da Europa. Há cerca de duas dezenas de pequenas ilhotas de crianças, cada uma com o seu tutor, tão próximas umas das outras que os professores dão as lições num murmúrio para que a história das dez pragas do Egipto se não misture com a música da tabuada de multiplicar.
Alguns não acreditaram que fosse possível, pensaram que Hirsch era um louco ou um ingénuo. Mas como ensinar crianças num brutal campo de extermínio onde tudo é proibido? E ele sorria. Hirsch sorria sempre enigmaticamente, como se soubesse qualquer coisa que os outros ignoravam. Não importa quantas escolas os nazis fecham, respondia-lhes. Sempre que alguém se detiver numa esquina a contar qualquer coisa e algumas crianças se juntarem à sua volta para ouvir, aí terá sido fundada uma escola. A porta do barracão abre-se com brusquidão e Jakopek, o vigia de serviço, corre para o quarto do chefe de bloco Hirsch. Os socos que calça sujam o chão com a terra húmida do campo e a bolha de falsa segurança do Bloco 31 rebenta. Do seu canto, Dita Adlerova olha, hipnotizada, para os minúsculos salpicos de lama: parecem insignificantes, mas na realidade contaminam tudo, tal como uma só gota de tinta suja toda uma tigela de leite. - Seis, seis, seis!
É o sinal que indica a chegada de guardas SS ao Bloco 31, e por todo o barracão ergue-se uma revoada de murmúrios. Nessa fábrica de destruição de vidas que é Auschwitz-Birkenau, onde os fornos funcionam dia e noite alimentados por corpos humanos, o 31 é um bloco atípico, uma raridade. Ou melhor, uma anomalia. Um êxito de Fredy Hirsch, que começou como um simples instrutor de desportos Para grupos juvenis e agora é um atleta que está a fazer em Auschwitz uma corrida de obstáculos contra o maior rolo compressor de vidas da história da humanidade. Conseguiu convencer as autoridades alemãs do Lager de que ter as crianças entretidas num barracão separado facilitaria o trabalho dos pais do campo BIIb, a que chamam campo familiar porque nos outros as crianças são tão raras como as aves. Em Auschwitz não há aves; electrocutam-se nas cercas de arame farpado. O alto-comando do campo acedeu à criação de um barracão infantil, talvez até fosse essa a sua intenção desde o início, mas sempre na condição de tratar-se de um bloco de actividades lúdicas: estava terminantemente proibido o ensino de qualquer matéria escolar.
Hirsch espreita através da porta entreaberta do seu quarto de Blockältester do 31e não precisa de dizer uma palavra aos ajudantes nem aos professores, que têm os olhos fixos nele. Faz um quase imperceptível gesto de assentimento com a cabeça. O seu olhar transmite exigência. Ele faz sempre o que deve e espera que todos se comportem da mesma maneira. As lições cessam e vão-se transformando em banais cantiguinhas em alemão ou em jogos de adivinhas para fingir que está tudo bem quando os lobos arianos mostrarem as suas caras louras. Em geral, os dois soldados da patrulha entram por rotina no barracão, mas mal passam da porta, ficam uns instantes a observar as crianças, por vezes até aplaudem uma cantiga ou fazem uma festa na cabeça de um garotinho e continuam com a sua ronda. Jakopek, porém, acrescenta mais qualquer coisa ao alarme convencional: - Inspecção! InspecçãoIn Antonio G. Iturbe, 2012, A Bibliotecária de Auschwitz, Dita Dorachova, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-657-432-1.

Cortesia de Planeta/JDACT