Bolonha, sábado, 12 de Maio de 1313
«(…) Antes de sair viu-se ao espelho de prata bem polido pendurado na parede.
Alto e magro, com os olhos verdes, a testa alta e os cabelos castanhos
ondulados, era considerado um belo homem e, desde que, uns anos antes, ficara
viúvo, um óptimo partido. Mas estava prestes a casar-se novamente e os pais da
noiva tinham-lhe feito um convite. Tentou sorrir, mas o espelho devolveu-lhe
uma expressão tensa. Sentia-se nervoso, não por causa da viagem, mas pelo que
ia fazer antes: dar a notícia à noiva e ao pai dela, exactamente no dia em que tinham
combinado fixar a data do casamento. Vestiu um casaco preto com capuz, leve mas
útil para se proteger das intempéries primaveris, e desceu até ao pátio.
Ordenou ao criado Pietro que arrumasse a mala na carroça enquanto se despedia dos
filhos, assegurando-lhes que voltaria em breve. Subiu para a carroça e
sentou-se em cima da mala coberta com a tela encerada, enquanto Pietro se
montava na sela do cavalo baio. Pouco depois, o criado deixou-o em frente do
palacete de Gandone de Gandoni e continuou para o porto de Corticella, onde
iria providenciar o transbordo da bagagem numa galé fluvial. Embora pensando e
repensando que a sua viagem não escondia nada de reprovável, Mondino não se
sentia muito à vontade. Tinha pena, na verdade, que Gerardo de Castelbretone, o
jovem ex-templário com o qual estabelecera um laço de profunda amizade, não
pudesse acompanhá-lo a Veneza. Preferia não fazer sozinho uma viagem que a sua
consciência não conseguia justificar totalmente. Quando fora procurá-lo, assim
que tomara a decisão de partir, Gerardo recebera-o vestido como um janota e
recusara-se a acompanhá-lo, evocando um pretexto que lhe soara a falso. Mondino
mostrara-se ofendido e só então o rapaz lhe dissera a verdade: estava incumbido
de uma missão de que não podia falar-lhe. Mencionara entretanto espias
franceses que o mantinham sob vigilância. Mondino deixara-lhe o endereço do
lugar onde poderia encontrá-lo em Veneza caso mudasse de ideias, e fora tratar
da carta de apresentação.
Em casa de Gandone, fora acolhido sem cerimónias, como um membro da
família. Era o que mais lhe agradava, o ambiente tranquilo que sempre envolvia
as suas visitas. Uma criadita acompanhou-o até à grande cozinha pavimentada com
tijolos, onde Gandone em pessoa, com os seus gordos braços brancos nus até aos
cotovelos, se dedicava a dar instruções à cozinheira, por entre uma babel de
ruídos dominada pelo grasnar desesperado de uma pata a quem estavam prestes a
cortar o pescoço. O patrão aproveitou para lhe perguntar se gostava de pata com
molho de ervas e vinagre. Só então Mondino percebeu que, embora não o tivessem
convidado, davam por certo que ficaria para o jantar, para festejar a marcação
da data do casamento. Toda a alegre agitação que reinava na cozinha parou
repentinamente quando disse: - Perdoem-me, mas não posso aceitar o convite.
Estou de partida para Veneza. - Logo
hoje? - perguntou Gandone, com uma expressão sombria. - Pensei que a
reunião em que vamos decidir a data do casamento com a minha filha tivesse
também alguma importância para vós. - Seguiu-se um momento de silêncio pesado,
no qual nem a pata ousou grasnar, depois acrescentou: - Ou mudastes de ideias? - Não mudei de ideias sobre coisa
alguma - apressou-se Mondino a responder. Pareceu-lhe adivinhar, além do alívio
de Gandone, uma certa desilusão por parte da criadagem, que, como é evidente,
já esperava um desfecho dramático. - Uma pessoa que me é querida está
gravemente doente e tenho de partir com a máxima urgência para tentar uma cura in extremis. Soube-o há poucas
horas e não tive tempo de vos prevenir.
Não disse que a pessoa em questão era uma mulher que outrora amara e da
qual não recebia notícias havia algum tempo. E omitiu o motivo pelo qual não
hesitara em aceitar o pedido de ajuda, que tinha que ver também com as origens
dos Liuzzi, um facto que o futuro sogro conhecia, mas do qual era melhor não se
falar mais. Na realidade, Adia não falara da sua doença na carta que lhe
enviara naquela manhã por um jovem judeu de nome David. O pai deste rapaz é acusado de um homicídio horrível que não cometeu,
e arrisca-se a pagá-lo com a vida, dizia a carta. Só vós podereis ajudar a provar
a sua inocência. Em nome do que nos uniu e que talvez ainda nos una, peço-vos
que venhais o mais depressa possível. Mondino ficara perturbado por ver
a carta de Adia numa folha de papel, por aquele apelo desesperado e pela
resposta que o rapaz lhe dera quando lhe perguntara por Adia. - Está
doente com febre terçã, respondera. - Os médicos dizem que lhe resta pouco
tempo de vida. Alguns meses, talvez um ano, ano e meio, com sorte. - Quereis
fazer o favor de me responder? - Ouviu a voz de Gandone como que ao longe. -
Desculpai, estava a pensar. O que me
haveis perguntado?
O que o perturbara mais fora a força das emoções que o tinham assaltado
ao ouvir a notícia da doença de Adia. Fora por isso, mais do que pelo
desejo de salvar da forca um homem que não conhecia, que se decidira a partir
de imediato. - Foi só para isto que
viestes? Eis o que vos perguntei. - O tom frio da pergunta, tão
estranho em Gandone, trouxe-o rapidamente ao presente». In Alfredo Colitto, Il Libro
dell’Angelo, 2011, O Livro do Anjo, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-724-074-4.
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