quarta-feira, 25 de junho de 2014

O Confronto do Olhar. O Encontro dos Povos na Época das Navegações Portuguesas. Séculos XV e XVI. António Luís Ferronha e Luís Albuquerque. «… pois que tu és homem que serás feito não homem; e quando anfermares para a morte, crescer-te-á a dor, e tu, pecador haverás grande pavor; o teu coração tremerá, a cabeça cairá, o siso esquecerá…»

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A imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos
«(…) É com base neste código referencial que se valorizam ou desvalorizam os povos extra-europeus, consoante estes, na imagem que deles se constrói, se aproximam ou se afastam do padrão que o Ocidente cristão para si mesmo definiu e de que não.abdica. O Negro, e o Africano em geral, não obstante as características próprias da sua imagem, são assim um dos alvos dessa atitude profundamente etnocêntrica. O alcance e os limites dessa imagem são traçados pelo código cultural que em cada momento histórico está disponível para os avallar. Recuamos ao século XIV e inícios do século XV, situando-nos nas fontes escritas portuguesas ou de versão portuguesa (ou mesmo ao século XIII nas obras que apenas nos chegaram por versões anteriores. Pretende-se efectuar uma sondagem em diversas áreas da produção escrita em que o referido código, associado a diferentes preo-narrativas e intenções, se pode captar, com evidência para as fontes narrativas, fontes relativas à vida moral e religìosa (principalmente teológicas e de espiritualidade) e pedagógicas.
Num primeiro momento, os tópicos e estereótipos directamente associados à cor negra e ao Africano-Negro; na orientação desta abordagem foram essenciais como ponto de partida as conclusões dos estudos já realizados por especialistas para as fontes escritas e iconográficas do Ocidente medieval; noutro momento, em articulação com o primeiro, as categorias mais englobantes da imagem dos povos não ocidental-cristãos em que o Africano se integra. Escolhendo o campo religioso como núcleo dessa imagem, veremos como as categorias, Cristão, Mouro, Gentio, etc., aparecem articuladas e hierarquizadas, compondo assim uma classificação antropológicas, que será, a posteriori, largamente utilizada na caracterização dos povos, não só africanos como ameríndios e asiáticos, com que a expansão europeia dos séculos XV e XVI se viu confrontada.
Nas fontes portuguesas confirma-se o grande peso negativo para a imagem do Africano do século XIV e inícios do século XV dos estereótipos de herança medieval anterior, associados à cor negra e ao Negro. O enegrecimento da cor da pele aparece associado à morte ou aproximação da morte e simboliza a tristeza e o sofrimento àquela ligados: … pois que tu és homem que serás feito não homem; e quando anfermares para a morte, crescer-te-á a dor, e tu, pecador haverás grande pavor; o teu coração tremerá, a cabeça cairá, o siso esquecerá, a virtude secará, a face emarelecerá, o rosto se fará negro, os orhos se farão trevosos, as orelhas ensurdecerão, a boca se fará muda, e a língua se encurtará. Nas Cantigas de Santa Maria, uma obra de meados do século XIII, o adjectivo negral é mesmo sinónimo de desgraçado. A cor negra é também a cor do castigo dos maus ou pecadores por oposição à cor branca, da recompensa dos bons, como no Boosco Deleitoso. A contraposição branco / negro de sentidos respectivamente positivo e negativo não representa em si qualquer preconceito de tipo racial, mas é tão-só o resultado do sistema de cores próprio do código cultural.
Num texto escrito em latim e de carácter acentuadamente teológico, acessível a um público muito restrito, o Colírio da Fé contra as Heresias de frei Álvaro Pais, a cor negra (num dos seus sentidos) é definida, não só como a cor do pecado mas igualmente do demónio. Mas esta caracterização do diabo como negro é largamente difundida e está ao alcance da maioria: é um tema frequente nos exemplos das obras espirituais, de devoção pessoal ou para responder às necessidades da pregação; estão neste último caso, os exemplos de uma obra de adequação pedagógica de doutrina, como o Orto do Esposo, a literatura de visão, a hagiografia ou mesmo a poesia piedosa destinada a ser cantada». In José Silva Horta, Luís de Albuquerque, Breves considerações sobre o outro na cartografia portuguesa, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991, ISBN 972-21-0561-2.

Cortesia de Caminho/JDACT