A imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos
«(…) É com base neste código referencial que se valorizam ou desvalorizam
os povos extra-europeus, consoante estes, na imagem que deles se constrói, se
aproximam ou se afastam do padrão que o Ocidente cristão para si mesmo definiu
e de que não.abdica. O Negro, e o Africano em geral, não obstante as
características próprias da sua imagem, são assim um dos alvos dessa atitude
profundamente etnocêntrica. O alcance e os limites dessa imagem são traçados
pelo código cultural que em cada momento histórico está disponível para os
avallar. Recuamos ao século XIV e inícios do século XV, situando-nos nas fontes
escritas portuguesas ou de versão portuguesa (ou mesmo ao século XIII nas obras
que apenas nos chegaram por versões anteriores. Pretende-se efectuar uma
sondagem em diversas áreas da produção escrita em que o referido código,
associado a diferentes preo-narrativas e intenções, se pode captar, com
evidência para as fontes narrativas, fontes relativas à vida moral e religìosa
(principalmente teológicas e de espiritualidade) e pedagógicas.
Num primeiro momento, os tópicos e estereótipos directamente associados
à cor negra e ao Africano-Negro; na orientação desta abordagem foram essenciais
como ponto de partida as conclusões dos estudos já realizados por especialistas
para as fontes escritas e iconográficas do Ocidente medieval; noutro momento,
em articulação com o primeiro, as categorias mais englobantes da imagem dos
povos não ocidental-cristãos em que o Africano se integra. Escolhendo o campo
religioso como núcleo dessa imagem, veremos como as categorias, Cristão, Mouro,
Gentio, etc., aparecem articuladas e hierarquizadas, compondo assim uma
classificação antropológicas, que será, a posteriori, largamente utilizada
na caracterização dos povos, não só africanos como ameríndios e asiáticos, com
que a expansão europeia dos séculos XV e XVI se viu confrontada.
Nas fontes portuguesas confirma-se o grande peso negativo para a imagem
do Africano do século XIV e inícios do século XV dos estereótipos de herança
medieval anterior, associados à cor negra e ao Negro. O enegrecimento da cor da
pele aparece associado à morte ou aproximação da morte e simboliza a tristeza e
o sofrimento àquela ligados: … pois que tu
és homem que serás feito não homem; e quando anfermares para a morte,
crescer-te-á a dor, e tu, pecador haverás grande pavor; o teu coração tremerá,
a cabeça cairá, o siso esquecerá, a virtude secará, a face emarelecerá, o rosto
se fará negro, os orhos se farão trevosos, as orelhas ensurdecerão, a boca se fará
muda, e a língua se encurtará. Nas Cantigas
de Santa Maria, uma obra de meados do século XIII, o adjectivo negral
é mesmo sinónimo de desgraçado. A cor negra é também a cor do castigo dos maus ou
pecadores por oposição à cor branca, da recompensa dos bons, como no Boosco
Deleitoso. A contraposição branco / negro de sentidos respectivamente
positivo e negativo não representa em
si qualquer preconceito de tipo racial, mas é tão-só o resultado do
sistema de cores próprio do código cultural.
Num texto escrito em latim e de carácter acentuadamente teológico, acessível
a um público muito restrito, o Colírio da Fé contra as Heresias de
frei Álvaro Pais, a cor negra (num dos seus sentidos) é definida, não só como a
cor do pecado mas igualmente do demónio. Mas esta caracterização do diabo como
negro é largamente difundida e está ao alcance da maioria: é um tema frequente
nos exemplos das obras espirituais, de devoção pessoal ou para responder às necessidades
da pregação; estão neste último caso, os exemplos de uma obra de adequação pedagógica
de doutrina, como o Orto do Esposo, a literatura de visão, a hagiografia ou mesmo a
poesia piedosa destinada a ser cantada». In José Silva Horta, Luís de Albuquerque,
Breves
considerações sobre o outro na cartografia portuguesa, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na
época das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991,
ISBN 972-21-0561-2.
Cortesia de Caminho/JDACT