quinta-feira, 26 de junho de 2014

Os Teatros de Lisboa. Júlio C. Machado. Ilustrações de Bordalo Pinheiro. «O que era então, e de que provinha essa melancholia incurável? Fugira-lhe o talento? Perdera o dom? Não produzia já porventura a si próprio o effeito que produzia ainda nos outros?»

Coppolla
jdact

NOTA: De acordo com o original

«(…) Beneventano tinha por entre os seus ridículos, um talento de artista. Era estapafúrdio, era affectado, fazia jogo de attitudes para qualquer coisa, mãos para o ar como quem desafia os elementos; braço esquerdo erguido como quem conjura; corpo dobrado e mãos para o chão como quem se espoja em caturreira trágica… Entretanto, o diabo do homem, poseur ou não poseur, era um artista. Ninguém lhe era superior no Moysés, na Semiramis, no canto ornado. Um homem profundamente irónico, desdenhoso, que mettia tudo á bulha, e que respeitava poucas vezes alguém ou alguma coisa, disse-me d’elle uma vez: - Não se pode ser tão charlatão de teatro sem fazer do canto o que elle faz, nem se pode fazer tanto em musica sem ser charlatão! É inevitável. Este homem era Coppolla. O famoso Coppolla, que durante muitos anos regeu a orchestra de S. Carlos, um dos raros de quem pode escrever-se a palavra Maestro sem a penna espirrar… nem o nariz do leitor, com o riso, o que nem sempre acontece a respeito de alguns dos maestros que por ahi lemos quasi sem dar por isso, e cuja existência e prendas os reclamos dos jornaes, mais do que suas obras, affirmam.
Coppolla parecia no ultimo tempo sobreviver a si próprio e passeiar por Lisboa a sua indiferença e o seu não se me dá!, como se lhe estivesse ausente a alma. Entrar na multidão depois de haver sido um nome, e perder- se na turba como se nunca tivesse sido nem illustre nem famoso: deixar apagar a inspiração no cérebro e a aureola na fronte, passar ao lado de todos, pelo meio de todos, egual a todos: ter sido illustre e querer ser ninguém, parecia o intento d’este talento desiludido da vida e da gloria. Jamais alguém o desdenhara, nem fora injusto para com elle; não devia sangrar-lhe o coração pela ingratidão do publico, ao ponto de ter de revoltar-se e de protestar; a Sannazáro reverdecera a Nina, a Borghi suspirara-a entre applausos. Não houvera affronta; não cumpria esperar o dia da reparação; a empresa de S. Carlos considerava-o muito; os seus amigos nunca deixaram de se sorrir para elle e de apertar-lhe a mão em o encontrando.
O que era então, e de que provinha essa melancholia incurável? Fugira-lhe o talento? Perdera o dom? Não produzia já porventura a si próprio o effeito que produzia ainda nos outros? Ha estrellas fixas, cuja luz leva milhares de annos primeiro que chegue até nós, e a que não poderia observar-se daqui o escurecer senão em centenas de séculos. Quem sabe se uma d’essas estrellinhas que a gente admira nas noites serenas não haveria sido arrancada do pavilhão celeste pela mão mysteriosa, no dia da creação do nosso globo…
Ainda o olhar se deslumbra ao vel-o; mas o pobre astro caído lá sabe, de si para si, que lhe tiraram a coroa, e vae indo aos tropeções, opaco e triste, para o fundo turvo da humanidade... Assim eu cuidei muitas vezes quando o via no theatro, nas ruas, na casa Podestá, se succedia encontrarmo-nos á mesa d’essa amável família, assim eu cuidei ao observar o modo vago e distrahido d’elle, os ares de absorto n’uma idea, ou de indifferente ao deixal-a fugir-lhe, que, guardadas as proporções de um sol a uma cabeça, fosse esta a historia do talento de Coppolla.
Uma occasião apenas, ao cantar-se em S. Carlos o Stabat Mater, em que uma das Marchisios, a Carlota, tão extraordinária, tão prodigiosa foi, elle pareceu accordar com aquella musica; de tudo o que escreveu Rossini o mais sublime e superior voo do seu génio. Era natural! Haviam sido amigos, os dois maestros, vivendo annos em boa intimidade artistica; o auctor do Barbeiro estimara sempre muito a Nina, preoccupára-se em querer saber como fora que tinha vindo aquella idea a Coppolla; haviam estado na fama pela mesma época; e, pelo mesmo tempo depois, se haviam calado; Rossini permanecendo sereno, descuidoso, ironico, no centro d’aquelle pandemonio de Paris, sem querer compor senão algum prato rossiniano, elle de quem se fallára tanto como de Napoleão, elle o primeiro dos artistas vivos, deus moderno que se enfastiara das honrarias, da gloria, dos triumphos, rindo-se de tudo menos do prazer da mesa: Coppolla, ficando em Portugal numa existência nómada, da rua do Alecrim para as Larangeiras, das Larangeiras para o Farrobo, convivendo com os artistas, entretendo as noites no theatro, ou em reuniões, não escrevendo nunca, não pensando em si, não tolerando quasi que lhe falassem d’elle!» In Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.

Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT