sexta-feira, 6 de junho de 2014

O Anel Misterioso. Cenas da Guerra Peninsular. 1873. Alberto Pimentel. «Que valeria a minha presença aqui? Os criados fugiriam decerto, e a edade do padre capellão não lhe permitiria defender duas mulheres, ambas timidas, uma porque é velha, e outra porque é nova»

Cortesia de wikipedia

Na quinta das Chãs

«(…) Convenho, padre capellão, e é por conhecer a sua desinteressada, a morgada deu a esta palavra uma inflexão sensivelmente irónica, desinteressada dedicação, que tenho batido á sua porta sempre que a necessidade me obriga a incommodar alguem. Se lhe pedia agora para passar aviso aos caseiros, era porque não queria importunal-o com repetidas mercês... - Nunca me incommodaram as ordens de vossa senhoria, atalhou o padre, curvando-se respeitosamente a meio da sala. Eu é que a mim mesma me incommodo com a ideia de incommodal-o, posto que eu não seja dos devedores que mais devem aborrecer por egoistas... - Creio que já tive a honra de dizer á senhora morgada que a occasião é má para todos. E proseguiu mirando ao alvo que elle queria attingir: Era porém grande a quantia que vossa senhoria desejava? -A sufficiente para me transportar ao Porto com a menina, e para não tornar pesada a hospedagem que minha filha haja de dar-me. É preciso partir, padre capellão, se os francezes não forem repellidos na fronteira. Entrarão por esse Minho dentro furiosos, e eu não respondo só pela minha vida, que já pouco vale, mas tambem pela de Augusta, que me foi confiada em deposito. Que valeria a minha presença aqui? Os criados fugiriam decerto, e a edade do padre capellão não lhe permitiria defender duas mulheres, ambas timidas, uma porque é velha, e outra porque é nova. Além de maior segurança que offerece o Porto, como grande cidade que é, Augusta poderá d’ali seguir melhor a sorte de seu pae e seu irmão nos combates. Não estará para aqui anciosa sem receber noticias que a tranquillisem. Aqui, quando ha guerra, apenas se sabe que ha guerra, e mais nada.
O padre capellão offereceu-se para ficar; desappareceram todas as difficuldades. Sem o seu offerecimento eu não poderia deixar desamparado o solar de meus avós. Teria de luctar angustiosamente entre o amor d’Augusta e o respeito á memoria de meus paes e meu marido. Se os invasores entrarem, respeitarão porventura a sua velhice e as suas vestes, padre capellão, se é que elles respeitam alguma cousa... O padre capellão, julgando haver já simulado a precisa resistencia á partida da morgada, apostrophou de golpe: - Mas, voltando ao caso, senhora morgada, ponhamos os pontos nos ii. Quanto desejava vossa senhoria? - Eu... cem moedas talvez. Cem moedas é muito, senhora morgada, e eu não estou prevenido. Pois veja o padre capellão se póde obter essa quantia, que eu cederei a qualquer exigencia de juro. - Menos de 15 por cento não será possivel, senhora morgada...
Pagarei os 15 por cento; trate o padre capellão de negociar sem demora as cem moedas. Hum!, rouquejou o padre. Veremos. Póde ser que se abra alguma porta ao homem honrado que só em grande estreiteza deixa d’abrir a sua. Ámanhã falaremos, senhora morgada. Vou fazer as minhas rezas emquanto não chega o palrador do Teixeira com noticias dos francezes... E saíu da sala em direcção ao seu quarto. A morgada, vendo-se só, pareceu respirar com sofreguidão, como o encarcerado que conquista a liberdade e, como elle, pareceu conversar comsigo mesma: - Que alma de marmore a d’este homem! É um inimigo que tenho de portas a dentro e que conservo porque me não permitte o animo nem a edade travar lucta com tão arteiro contendor, que apara todos os golpes na batina com beatitude irritante.
Depois levantou-se, agitou a campainha, e esperou com os olhos fitos na porta que apparecesse a criada. - A menina dorme? perguntou. - Dorme, senhora morgada. Accende o candieiro e abre a mesa. Quando bater o sr. Teixeira, manda entrar. Palavras não eram ditas, resoou a aldrava do portão. Momentos depois entrava á sala o velho Teixeira, fidalgo retirado das pompas da côrte por conselho da consciencia que o advertia de que estava a empobrecer d’um dia a outro. N’aquelles tempos que precederam a retirada da familia real para o Brazil, as tentações de Lisboa eram tantas, e tão dispendiosas, que não admirava que um cortezão immolasse a celebradas damarias o seu opulento morgado do Minho. Alguma coisa salvára porém o velho aulico do muito que na côrte consumira. Trouxera de lá a palaciana compostura que realça até mesmo na decadência». In Alberto Pimentel, O Anel Misterioso, Cenas da Guerra Peninsular, Empreza da História de Portugal, Lisboa, Sociedade Editora Livraria Moderna,1904.

Cortesia da EHdePortugal/JDACT