Na quinta das Chãs
«(…) Convenho, padre capellão, e é por conhecer a sua desinteressada, a
morgada deu a esta palavra uma inflexão sensivelmente irónica, desinteressada
dedicação, que tenho batido á sua porta sempre que a necessidade me obriga a
incommodar alguem. Se lhe pedia agora para passar aviso aos caseiros, era
porque não queria importunal-o com repetidas mercês... - Nunca me incommodaram as ordens de
vossa senhoria, atalhou o padre, curvando-se respeitosamente a meio da sala. Eu
é que a mim mesma me incommodo com a ideia de incommodal-o, posto que eu não
seja dos devedores que mais devem aborrecer por egoistas... - Creio que já tive
a honra de dizer á senhora morgada que a occasião é má para todos. E proseguiu
mirando ao alvo que elle queria attingir: Era
porém grande a quantia que vossa senhoria desejava? -A sufficiente para
me transportar ao Porto com a menina, e para não tornar pesada a hospedagem que
minha filha haja de dar-me. É preciso partir, padre capellão, se os francezes
não forem repellidos na fronteira. Entrarão por esse Minho dentro furiosos, e
eu não respondo só pela minha vida, que já pouco vale, mas tambem pela de
Augusta, que me foi confiada em deposito. Que
valeria a minha presença aqui? Os criados fugiriam decerto, e a edade
do padre capellão não lhe permitiria defender duas mulheres, ambas timidas, uma
porque é velha, e outra porque é nova. Além de maior segurança que offerece o
Porto, como grande cidade que é, Augusta poderá d’ali seguir melhor a sorte de
seu pae e seu irmão nos combates. Não estará para aqui anciosa sem receber noticias
que a tranquillisem. Aqui, quando ha guerra, apenas se sabe que ha guerra, e
mais nada.
O padre capellão offereceu-se para ficar; desappareceram todas as
difficuldades. Sem o seu offerecimento eu não poderia deixar desamparado o
solar de meus avós. Teria de luctar angustiosamente entre o amor d’Augusta e o
respeito á memoria de meus paes e meu marido. Se os invasores entrarem,
respeitarão porventura a sua velhice e as suas vestes, padre capellão, se é que
elles respeitam alguma cousa... O padre capellão, julgando haver já simulado a
precisa resistencia á partida da morgada, apostrophou de golpe: - Mas, voltando
ao caso, senhora morgada, ponhamos os pontos nos ii. Quanto desejava vossa
senhoria? - Eu... cem moedas talvez. Cem moedas é muito, senhora
morgada, e eu não estou prevenido. Pois veja o padre capellão se póde obter
essa quantia, que eu cederei a qualquer exigencia de juro. - Menos de 15 por
cento não será possivel, senhora morgada...
Pagarei
os 15 por cento; trate o padre capellão de negociar sem demora as cem moedas. Hum!,
rouquejou o padre. Veremos. Póde ser que se abra alguma porta ao homem honrado
que só em grande estreiteza deixa d’abrir a sua. Ámanhã falaremos, senhora
morgada. Vou fazer as minhas rezas emquanto não chega o palrador do Teixeira
com noticias dos francezes... E saíu da sala em direcção ao seu quarto. A
morgada, vendo-se só, pareceu respirar com sofreguidão, como o encarcerado que
conquista a liberdade e, como elle, pareceu conversar comsigo mesma: - Que alma de marmore a d’este homem! É um
inimigo que tenho de portas a dentro e que conservo porque me não permitte o
animo nem a edade travar lucta com tão arteiro contendor, que apara todos os
golpes na batina com beatitude irritante.
Depois levantou-se, agitou a campainha,
e esperou com os olhos fitos na porta que apparecesse a criada. - A menina dorme? perguntou. - Dorme,
senhora morgada. Accende o candieiro e abre a mesa. Quando bater o sr.
Teixeira, manda entrar. Palavras não eram ditas, resoou a aldrava do portão. Momentos
depois entrava á sala o velho Teixeira, fidalgo retirado das pompas da côrte
por conselho da consciencia que o advertia de que estava a empobrecer d’um dia
a outro. N’aquelles tempos que precederam a retirada da familia real para o
Brazil, as tentações de Lisboa eram tantas, e tão dispendiosas, que não
admirava que um cortezão immolasse a celebradas damarias o seu opulento morgado
do Minho. Alguma coisa salvára porém o velho aulico do muito que na côrte
consumira. Trouxera de lá a palaciana compostura que realça até mesmo na decadência».
In
Alberto Pimentel, O Anel Misterioso, Cenas da Guerra Peninsular, Empreza da
História de Portugal, Lisboa, Sociedade Editora Livraria Moderna,1904.
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