quinta-feira, 5 de junho de 2014

Memórias do Tempo de Camilo. A. A. Alberto Pimentel. «Mas não parou aqui a corajosa atitude do ‘Nacional’. No lugar do folhetim, em 5 de Outubro, estampou um escrito de ‘A. A’. sob o titulo ‘Horas de luz nas trevas d’um cárcere’, acompanhando esse escrito…»

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A chave do enigma
«(…) Quem era, na realidade, a misteriosa A. A. da Revista Contemporânea?
Todo o Porto o sabia, e Lisboa não o ignorou dentro de pouco tempo. A folha portuense O Nacional publicou em 8 de Junho de 1860 a seguinte noticia quanto possível lacónica, mas intencionada: Prisão, ante-hontem de tarde foi presa e entrou na cadéa da Relação a ex.ma snr.a D. Anna Plácido Pinheiro Alves, esposa de Manoel Pinheiro Alves (era acompanhada por uma criança de dois anos, seu filho e do marido, e por uma criada). A imprensa periódica do Porto obedecia naquela época a todos os melindres e reservas que a decência dos costumes ou as susceptibilidades pessoais recomendavam ao noticiário local. A reportage moderna e a interview modernissima estavam longe do seu advento. Por isso, os correspondentes da província só comunicavam ás folhas da capital o que podiam ou queriam dizer.
Contudo, O Nacional do Porto, onde Camilo Castelo Branco tinha dedicados amigos, como José Joaquim Gonçalves Basto (marido da Formosa das violetas e antigo jornalista; vide Noites de Lamego e Suicida) e Custodio José Vieira (advogado), quebrara a tradição da mordaça e noticiava em letra redonda os trâmites de um ruidoso processo de adultério, que era o assunto picante de todas as conversações particulares. Assim, pois, não só publicou a prisão de D. Ana Plácido, mas também, quatro meses depois, a entrada de Camilo no cárcere, sob a arguição de co-réu no mesmo crime de adultério. O n.° do Nacional de 1 de Outubro daquele ano divulgava esta noticia já desafogada de quaisquer reservas: Apresentou-se hoje no tribunal competente o sr. Camillo Gastello Branco, requerendo mandado de prisão para recolher-se á Relação e seguir os termos de livramento, na querella dada contra elle pelo sr. Manoel Pinheiro Alves.
Mas não parou aqui a corajosa atitude do Nacional. No logar do folhetim, em 5 de Outubro, estampou um escrito de A. A. sob o titulo Horas de luz nas trevas d’um cárcere, acompanhando esse escrito de algumas audazes palavras de Gonçalves Basto. Destas palavras de apresentação destacaremos apenas as que dizem respeito á situação atribulada da autora: e a infeliz, finalmente, sacudindo as farpas de muitas torturas que a sociedade applaude, pediu á sua alma enérgica ensaios de intelligencia que lhe promettessem para o futuro trabalhos de mais fôlego e mais segura garantia á sua subsistência. Tais ou quejandas considerações pareceriam hoje anodinas na imprensa portuguesa. Mas no Porto daquela época soaram como um grito de rebelião contra as conveniências sociais e a normalidade dos costumes sãos.
Este ousado procedimento do Nacional certamente foi lesivo, desde logo, ás suas finanças, mas Gonçalves Basto despresava o dinheiro com o dedicado intuito de sensibilizar a opinião dos românticos em favor de Camilo e D. Ana Augusta, bem como de fazer rosto á severidade iracunda dos burgueses. Era um esforço heroico de amizade pessoal. Aquela tolha portuense devia ter sofrido grande quebra nas assinaturas de que vivia, e que lhe seriam retiradas pela indignação de muitos subscritores intransigentes. A cidade do Porto timbrava de essencialmente comercial, sem os actuais laivos de mundanidade que desfiguram apenas algum tanto o primitivo caracter da sua população.
Ora, D. Ana Augusta era filha de negociante e mulher de negociante. A memoria honrada de seu pai impunha-se ao respeito dos colegas e a trágica morte que ele tivera no naufrágio do vapor Porto inspirava ainda compaixão. Manuel Pinheiro Alves, marido da ré, gozava de bons créditos em suas transacções e calculava-se que possuia algumas dezenas de contos. Assim, pois, todo o comercio portuense, indignado com o escândalo do adultério, sentia-se especialmente ferido no seu decoro de classe pela mácula que recaía sobre o nome respeitável de dois colegas». In Alberto Pimentel, Memórias do Tempo de Camilo, A. A., Companhia Portuguesa Editora, Magalhães e Moniz Editores, Porto, 1913.

Cortesia de M e Moniz/JDACT