A chave do enigma
«(…) Quem era, na
realidade, a misteriosa A. A. da Revista
Contemporânea?
Todo o Porto o sabia, e
Lisboa não o ignorou dentro de pouco tempo. A folha portuense O Nacional publicou em 8 de Junho de 1860 a seguinte noticia quanto possível
lacónica, mas intencionada: Prisão, ante-hontem
de tarde foi presa e entrou na cadéa da Relação a ex.ma snr.a D. Anna Plácido
Pinheiro Alves, esposa de Manoel Pinheiro Alves (era acompanhada por uma
criança de dois anos, seu filho e do marido, e por uma criada). A imprensa
periódica do Porto obedecia naquela época a todos os melindres e reservas que a
decência dos costumes ou as susceptibilidades pessoais recomendavam ao
noticiário local. A reportage moderna
e a interview modernissima estavam
longe do seu advento. Por isso, os correspondentes da província só comunicavam ás
folhas da capital o que podiam ou queriam dizer.
Contudo, O Nacional do Porto, onde Camilo
Castelo Branco tinha dedicados amigos, como José Joaquim Gonçalves
Basto (marido da Formosa das violetas
e antigo jornalista; vide Noites de
Lamego e Suicida) e
Custodio José Vieira (advogado), quebrara a tradição da mordaça e noticiava em
letra redonda os trâmites de um ruidoso processo de adultério, que era o
assunto picante de todas as conversações particulares. Assim, pois, não só
publicou a prisão de D. Ana Plácido, mas também, quatro meses depois, a entrada
de Camilo no cárcere, sob a arguição
de co-réu no mesmo crime de adultério. O n.° do Nacional de 1 de Outubro daquele ano divulgava esta noticia
já desafogada de quaisquer reservas: Apresentou-se
hoje no tribunal competente o sr. Camillo Gastello Branco, requerendo mandado
de prisão para recolher-se á Relação e seguir os termos de livramento, na
querella dada contra elle pelo sr. Manoel Pinheiro Alves.
Mas não parou aqui a
corajosa atitude do Nacional.
No logar do folhetim, em 5 de Outubro, estampou um escrito de A. A. sob o titulo Horas de luz nas trevas d’um cárcere, acompanhando esse escrito de
algumas audazes palavras de Gonçalves Basto. Destas palavras de apresentação
destacaremos apenas as que dizem respeito á situação atribulada da autora: e a infeliz, finalmente, sacudindo as farpas
de muitas torturas que a sociedade applaude, pediu á sua alma enérgica ensaios
de intelligencia que lhe promettessem para o futuro trabalhos de mais fôlego e
mais segura garantia á sua subsistência. Tais ou quejandas considerações
pareceriam hoje anodinas na imprensa portuguesa. Mas no Porto daquela época
soaram como um grito de rebelião contra as conveniências sociais e a
normalidade dos costumes sãos.
Este ousado procedimento
do Nacional certamente foi
lesivo, desde logo, ás suas finanças, mas Gonçalves Basto despresava o dinheiro
com o dedicado intuito de sensibilizar a opinião dos românticos em favor de Camilo e D. Ana Augusta, bem como de
fazer rosto á severidade iracunda dos burgueses. Era um esforço heroico de
amizade pessoal. Aquela tolha portuense devia ter sofrido grande quebra nas
assinaturas de que vivia, e que lhe seriam retiradas pela indignação de muitos
subscritores intransigentes. A cidade do Porto timbrava de essencialmente comercial,
sem os actuais laivos de mundanidade que desfiguram apenas algum tanto o primitivo
caracter da sua população.
Ora, D. Ana Augusta era filha de negociante e mulher de negociante. A
memoria honrada de seu pai impunha-se ao respeito dos colegas e a trágica morte
que ele tivera no naufrágio do vapor Porto
inspirava ainda compaixão. Manuel Pinheiro Alves, marido da ré, gozava de bons créditos
em suas transacções e calculava-se que possuia algumas dezenas de contos. Assim,
pois, todo o comercio portuense, indignado com o escândalo do adultério,
sentia-se especialmente ferido no seu decoro de classe pela mácula que recaía
sobre o nome respeitável de dois colegas». In Alberto Pimentel, Memórias do Tempo de
Camilo, A. A., Companhia Portuguesa Editora, Magalhães e Moniz Editores, Porto,
1913.
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