quarta-feira, 25 de junho de 2014

Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650. Raquel Patriarca. «… aceitar que a intolerância religiosa era moeda corrente, pelo facto de ser desconhecido o conceito hodierno de tolerância, talvez seja irmos longe demais»

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O Contexto
Notas sobre as mentalidades nos séculos XVI e XVII
(…) O desenvolvimento de novas ciências ligadas à navegação, o alargamento dos conceitos de tempo, cujo controlo se torna essencial para tirar partido das marés, produtos, rotas e prazos, o desfazer de mitos e medos, o desenvolvimento de novas actividades e capacidades, são tudo factores de extrema importância decorrentes dessa conquista, que marcam e interferem na vida quotidiana do século XVI.

A instalação do Tribunal do Santo Ofício
Teremos por certo que o antagonismo entre o povo de Israel e o peninsular existia já nos tempos obscuros, de que a história não conserva registo. - Os judeus frequentavam ao domingo as igrejas, recebiam os sacramentos, mas (...) nunca nas almas lhes tocou mácula, antes sempre tiveram imprimido o selo da antiga lei -.
A religião, entendida no sentido de vivência interna e espiritual, a dimensão da fé, e no sentido exteriorizável e partilhado em comunidade, a dimensão do ritual, tem um peso tangível efectivo no quotidiano dos homens e das mulheres de quinhentos e seiscentos. Ela pode ajudar a compreender e a explicar muitos dos antagonismos que surgem entre cristãos e judeus. A primeira citação reporta-se a esse choque intestino, cuja origem se perde na noite dos tempos. Segundo Lúcio Azevedo, a primeira perseguição aos judeus da Península, que está documentada, data do ano de 613, do reinado de Sisebuto, que ensaiou uma tentativa de expulsão de todos os judeus, à excepção dos que aceitassem a religião católica.
A forma de ver a crença numa determinada religião e a forma como ela é vivida eram noutros tempos muito diferentes das actuais. Nesta época, tão desconhecida era a ideia de tolerância religiosa, como as vias férreas e os telégrafos. Contudo, aceitar que a intolerância religiosa era moeda corrente, pelo facto de ser desconhecido o conceito hodierno de tolerância, talvez seja irmos longe demais. Se assim fosse, como explicar que Francisco Gomes, cristão-novo, natural de Sesimbra e morador em Setúbal, homem simples e sem formação, preso pelo Santo Ofício (maldito) em 1560 sob a acusação de proferir palavras contra a fé, tenha declarado, após quatro sessões de interrogatório e depois de ser posto a tormento no polé, que isto da Inquizição é ipocresia?
Seja qual for o conceito e o grau de tolerância então existentes, muitos cristãos viam nos judeus os causadores da morte de Cristo e os responsáveis por todos os males e desgraças que recaíam sobre as comunidades cristãs. Deles se dizia que (…) os tem Deus assinalados, como expressão do seu desprezo; exalam um cheiro mau, que só com o baptismo se dissipa; ao falarem, cospem-se por si e uns aos outros nas barbas, em castigo de haverem cuspido a Cristo quando o martirizaram; os de sexo masculino são menstruados, provavelmente também por castigo... Dizia-se ainda que tinham apêndices caudais, que praticavam cópula com animais, que a sua natureza era falsa e traidora como a de Judas, que eram culpados de todas as moléstias e a razão pelo descontentamento de Deus para com os cristãos. Desde muito cedo a legislação tende, aliás, a travar a livre circulação dos judeus, quer em termos físicos quer em termos sociais. São obrigados a viver dentro da judiaria e a dela não poderem sair durante a noite. Estão impedidos de se ausentar do país sem um salvo-conduto régio. É-lhes proibido o casamento com cristãos. Não podem ter escravos cristãos. Não têm acesso a cargos públicos. Não podem exercer a profissão de colector de impostos. São-lhes vedadas também as profissões de boticário e médico, com base na ideia peregrina de que boticários e médicos judeus quintavam os seus doentes, isto é, matariam um em cada cinco. Há ainda indícios de que não poderiam barbear-se, nem cortar o cabelo como cristãos.
Estas posturas aparecem-nos nas Ordenações Afonsinas, com o estatuto de leis gerais do reino de Portugal, vindo posteriormente a ser actualizadas e acrescentadas pelos vários monarcas, alegadamente, em resposta a exigências das facções antijudaicas da população. Mas há restrições e imposições oriundas sobretudo da Santa Sé. É o caso das determinações que resultam do Concílio de Latrão em 1215, assinado pelo Papa Inocêncio III. É o caso da obrigatoriedade de todos os judeus trazerem nas vestes um distintivo que mostrasse a sua condição, medida que teve consequências graves para a convivência dos homens e mulheres da lei de Moisés dentro das comunidades cristãs». In Raquel Patriarca, Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650 Dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2002.

Cortesia da U. do Porto/JDACT