domingo, 1 de junho de 2014

Fazes-me Falta. Leitura. Inês Pedrosa. «Tinhas resposta para tudo, raios te partam. Interrogavas o passado com veemência e método: porque é que isto foi assim? Porque é que as outras possibilidades não puderam ser? Onde é que está a verdade, para além dos factos?»

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«(…) Como é que eu mato a tua morte? Em sonhos, vens-me buscar, levas-me contigo por um corredor longo e frio. Porque há tantos corredores, e tão escuros, nos sonhos? Mas no fim, olhas para mim e já não és tu. Uma caveira com restos de carne nos olhos ri-se para mim e faz nha-nha-nha, como as crianças, bem feita, bem feita, enganei-te. Acordo e tenho dificuldade em separar-te da caveira. Vejo-te ossos, nervos e pele enegrecendo nos retratos, um sorriso cáustico flutuando no silêncio do quarto. E tudo cheira a velhice, à podridão instantânea em que te tornaste. Não querias que te visse morta; punes-me por isso?
A busca da verdade torna-nos castigadores. Tropecei tanto nas tuas pequenas mentiras. Urtigavam-me tanto. Mentia-te imediatamente, com um pouco mais de veemência, para tu veres. Mentiras. Tornavas tua uma graça que era minha, e essa anedota voltava para mim, aumentada, aviltada pelos pontos de humor que tinhas ganho entretanto no coração de alguém, à minha custa. Quando nos conhecemos não eras assim. Citavas-me. Punhas aspas. O teu encanto era essa, tão rara, cintilação de aspas. Dizias: Fulano disse-me, Cicrano contou-me. Sublinhavas a inteligência e a beleza das palavras dos outros. Na passagem à política foste largando esse rigor, como uma pele incómoda. Os nomes eclipsaram-se, varridos para debaixo do solene tapete das fontes seguras. Depois, à medida que foste ganhando confiança, aprendeste a dispensar inclusivamente esse recurso às fontes. Quantas frases saídas da minha boca para o teu ouvido, desenhadas de propósito para te fazer rir, regressaram a mim. Nos jornais, como citações da semana saídas do teu nobre cérebro.
Repara que eu não ponho em dúvida a nobreza e vastidão do teu pensar. Eras uma tese de doutoramento existencial em movimento. Alguma vez te disse isto? Pensavas tanto e tão bem que intercalavas sempre as citações nos sítios certos. Não precisavas de as engolir e vomitar como pérolas próprias. Tornaste-te ostra, sim; molusco, ou menos pessoa, se preferires. A princípio eu ofendia-me, replicava, fazia teatro. E isso era a verdade. Mas desisti; tu não fazias teatro nenhum. Que importância é que isso tem? Não me vais agora fazer uma cena de ciúmes por uma história que eu me esqueci que era tua. A Lia era assim. O Partido era assim: um clube onde ganha o que mais depressa conseguir caçar e comer as qualidades dos outros. E isso, explicavas-me, não era mentir. Entraste no mundo especializado onde mentir era diferente de omitir. Muito menos grave. E a traição só existia quando muito repetida, nos mesmos lugares, com as mesmas pessoas. O resto, inconfidências, sexo, intrigas, queixas, eram apenas escapadelas humanas. O teu código moral burocratizou-se; havia alíneas para todas as infracções. E mesmo as maiores passaram a ter pouco valor. Aprendeste que é mínima a distância entre um deslize e um crime. Que todos podemos, num dado instante, escorregar para o negro. Uma bebida, duas, um bêbado, um assassino; um charro, um cheiro de coca, uma dependência, um ladrão. A vida tornava-se assim. Incontida. Demasiado simples e complexa. Música em crescendo, ensurdecedora. Sem qualquer verdade de partida. Que importância é que isso tem? Pior é quando eles pegam num projecto meu e proclamam que é deles. E eu já me habituei: são homens, são muitos, sempre governaram assim. Se a guerra se faz com mísseis, não adianta cansar-me a atirar-lhes pedras. Tinhas resposta para tudo, raios te partam. No tempo em que estudavas História, a tua especialidade eram as perguntas. Interrogavas o passado com veemência e método: porque é que isto foi assim? Porque é que as outras possibilidades não puderam ser? Onde é que está a verdade, para além dos factosIn Inês Pedrosa, Fazes-me Falta, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2002, ISBN 972-20-2253-9.

Cortesia de Quixote/JDACT