Formação intelectual
«(…) Embora dissesse mais tarde que não sabia alemão, Góis, mal chegou a Wittenberg, num
domingo, foi imediatamente à igreja de Lutero para o ouvir pregar. Depois do
serviço religioso Góis assistiu a um jantar organizado pelo seu anfitrião, a
maior autoridade militar da cidade, jantar a que estiverem presentes Lutero
e Melanchthon. Isso proporcionou-lhe uma primeira oportunidade de discutir
questões religiosas com as figuras mais representativas do protestantismo. Para
um católico eminente como Góis um tal passo não era de pouca monta. Parece que Melanchthon
lhe teria explicado, cheio de entusiasmo, os ensinamentos e as práticas dos
protestantes e que Góis teria escutado com atenção, sem que, tanto quanto se
sabe, tivesse levantado quaisquer objecções. Lutero contribuiu com o seu
quinhão para a conversa, e provavelmente disse muito mais do que se sabe; Gois
só mencionou a justificação de carácter geral e já muito conhecida que Lutero
fez da Reforma, de que tudo o que ele
fazra era com um bom fim e com o propósito de ensinar a verdade, a fim de
salvar as almas desencaminhadas e perdidas.
Supõe-se que Gois teria respondido frouxamente que isso lhe parecia mal, e a sua conduta posterior
leva a crer que Lutero não só não o ofendeu de modo nenhum mas que até, pelo
contrário, lhe aguçou o apetite por mais informações. Nessa noite a discussão
continuou em casa de Lutero. Foi uma reunião amigável em que Katharina Bora,
mulher de Lutero, serviu nozes e maçãs.
Embora só se conheçam alguns pormenores, é evidente que retomaram o debate de
matérias controversas. Os reformadores, sem atender aos sentimentos do seu convidado,
entregaram-se a uma livre crítica da Igreja Catolica. Quando a certa altura a
conversa incidiu sobre o contraste entre o luxo de Roma e a simplicidade dos
reformadores, Melanchthon sugeriu que se mostrasse
[a Gois] a sua pobreza. Nessa questão, que era objecto de largo debate,
Gois estava de acordo com os seus anfitriões e anuíu a ir a casa de Melanchthon
para presenciar uma cena de vida modesta. O incidente estava-lhe ainda bem vivo
na memória quando, já velho, relatou como
ele viu a mulher de Melanchton fiando e vestida com uma saia velha de bocaxim,
e que era pobre o dito Melanchthon.
Não há indicação de que Góis
tenha tido dúvidas quanto à sua visita a Wittenberg; pelo contrário, apreciou
encontros com os reformadores. Como muitos católicos de vistas liberais, Góis
sentiu-se mais atraído por Melanchthon do que por Lutero, cujas
maneiras um tanto ou quanto grosseiras e cujas falas fanáticas alienavam muitos
simpatizantes católicos. (Dantiscus chamava-lhe possesso). O bom entendimento entre Gois e Melanchthon provinha da
visão que Melanchthon tinha de uma fé culta semelhante à de Gois, e dos
esforços bem conhecidos do reformador por manter o diálogo entre as igrejas.
Gois estava mesmo disposto a adiar a partida por algumas horas para poder aceitar
o convite de Melanchthon para um último encontro ao jantar. Os dois
separaram-se como bons amigos e corresponderam-se durante um período de sete
anos.
Se o testemunho da maioria dos seus compatriotas no Santo Ofício (maldito) era verdadeiro, e há poucas ou
nenhumas razões para duvidar de que o fosse, Gois sentia uma profunda admiração
por Melanchthon. Segundo os relatos de algumas testemunhas, o que o mais
entusiasmava em Melanchthon era a humildade, e isso foi também corroborado por
outras. Ao observar Melanchthon, um
homem tão ilustrado, a andar a pé ao lado de Lutero (que ia a cavalo),
discutindo pontos de doutrina, Góis ficou impressionado com a humilde
submissão de Melanchthon à autoridade de Lutero. Conta-se que, quando Gois relatou
este incidente a pessoas das suas relações, levantou os olhos ao céu como que
num arroubo e exclamou: Quem viu uma
coisa assim tem que confessar que ela era bem digna de se ver. A visita de
Gois a Wittenberg resultou da mesma atitude que o levou a defender a Igreja da
Etiopia. Embora não estivesse ainda preparado para definir a sua posição
religiosa, agiu motivado pelo desejo de compreensão e de compromisso. Se as
cartas trocadas com Melanchthon não se tivessem perdido na totalidade, à
excepção de uma, estaríamos em melhor situação para avaliar a extensão real da
sua adesão à Reforma. Por outro lado não restam dúvidas de que a sua
propensão para a Reforma não era de carácter transitório, mas que, pelo contrário,
representava sentimentos religiosos duradoiros. Mesmo depois de ter cortado
relações com os reformadores não perdeu o espírito de tolerância que estava na
origem do seu contacto com Wittenberg, o que continuou a ser vida fora a parte
essencial da sua visão intelectual». In Elisabeth Feist Hirsch, The Life and Thought of a Portuguese
Humanist, The Hague Netherlands, 1967, Damião de Góis, Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa, 2002, ISBN 972-31-0677-9.
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