quinta-feira, 12 de junho de 2014

As Benevolentes. II Guerra Mundial. Jonathan Littell. «Uma pequena granada redonda que despoletaria com delicadeza antes de soltar a cavilha, sorrindo ao pequeno som metálico da mola, o último que ouviria, exceptuadas as pulsações do meu coração nos meus ouvidos»

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Toccata
«Irmãos humanos, deixem-me contar-vos como foi que se passou. Não somos seus irmãos, replicarão os que me lêem, e não queremos saber. E é bem verdade que se trata de uma história sombria, mas também edificante, um verdadeiro conto moral, garanto-vos eu. Corre o risco de ser um tanto comprida, afinal de contas passaram-se muitas coisas, mas caso os leitores não esteiam demasiado apressados, com um pouco de sorte o tempo há-de chegar. E depois isto diz-vos respeito: acabarão por ver bem que vos diz respeito. Não pensem que procuro convencer-vos seja do que for; bem vistas as coisas, as opiniões do leitor são da sua conta. Se me decidi a escrever depois de todos estes anos, é para esclarecer as coisas para mim mesmo e não para os que me lêem. Durante muito tempo, cada um de nós rasteja nesta terra como uma lagarta, na expectativa da borboleta esplêndida e diáfana que traz em si. E depois o tempo passa, a ninfose não chega, ficamos larva, constatação aflitiva, que havemos de fazer com ela? O suicídio, bem entendido, continua a ser uma opção. Mas, para dizer a verdade, o suicídio tenta-me pouco. Pensei longamente nele, é evidente; e se tivesse de me valer desse recurso, eis como procederia: poria uma granada bem apertada contra o meu coração e partiria numa viva explosão de júbilo. Uma pequena granada redonda que despoletaria com delicadeza antes de soltar a cavilha, sorrindo ao pequeno som metálico da mola, o último que ouviria, exceptuadas as pulsações do meu coração nos meus ouvidos. E depois a felicidade enfim, ou em todo o caso a paz, e as paredes do meu escritório enfeitadas com os meus retalhos. Para as mulheres-a-dias ficará o trabalho de limpeza, é para isso que são pagas, tanto pior para elas. Mas, como disse, o suicídio não me tenta. Não sei porquê, de resto, um velho fundo de moral filosófica talvez, que faz com que eu me diga que afinal de contas não é para nos divertirmos que cá estamos. Para fazer o quê, então? Não faço ideia, para durar, sem dúvida, para matar o tempo antes que ele nos mate. E nesse caso, como ocupação, nas horas vagas, escrever não vale menos do que qualquer outra coisa. Não que eu tenha horas vagas em demasia, sou um homem ocupado; tenho aquilo a que se chama uma família, um trabalho, e por conseguinte responsabilidades, tudo isso nos toma tempo, não nos deixando muito para descrevermos as nossas recordações. Tanto mais que recordações, tenho-as, e até mesmo numa quantidade considerável.
Sou uma verdadeira fábrica de recordações. Poderia ter passado a vida a manufacturar recordações minhas, ainda que me paguem antes, agora, a manufactura de rendas. De facto, poderia igualmente não escrever. Bem vistas as coisas, não é uma obrigação. Desde o fim da guerra, mantive-me um homem discreto; graças a Deus, nunca tive necessidade, como alguns dos meus ex-colegas, de escrever as minhas Memórias com intuitos de justificação, porque nada tenho a justificar, nem com propósitos lucrativos, porque ganho bastante bem a minha vida com o que faço. Uma vez, estava na Alemanha, numa viagem de negócios, discutia com o director de uma grande casa de peças de roupa íntima, ao qual pretendia vender rendas. Fora-lhe recomendado por antigos amigos; assim, sem fazermos perguntas, sabíamos os dois a que nos atermos, um em relação ao outro. A seguir à nossa entrevista, que se desenrolara aliás de maneira bastante positiva, levantou-se para tirar um volume da sua biblioteca e ofereceu-mo. Eram as memórias póstumas de Hans Frank, o Governador-Geral da Polónia; o livro intitulava-se Frente ao Cadafalso. Recebi uma carta da viúva dele, explicou-me o meu interlocutor. Editou à sua custa o manuscrito, que ele redigiu depois do seu processo, e está a vender o livro para cobrir as necessidades dos filhos. Imagine o ponto a que as coisas chegaram. A viúva do Governador-Geral. Encomendei-lhe vinte exemplares, para os oferecer. Propus também a todos os meus chefes de departamento que comprassem um. Ela escreveu-me uma carta de agradecimentos comovente. Você conheceu-aIn Jonathan Littell, As Benevolentes, 2006, Publicações Dom Quixote, 2014, Alfragide, ISBN 978-972-20-3304-6.

Cortesia PDQuixote/JDACT