domingo, 22 de junho de 2014

Siglo de Oro. Relações Hispano-Portuguesas no século XVII. Isabel Almeida. «As escolhas de Camões, diferentes das de um Jerónimo Corte-Real, facilitaram esse encontro apaixonado com o poema. Porque n’Os Lusíadas é de Portugal e da sua história que se trata»

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Leituras de Camões no Tempo dos Filipes
«(…) Aí regressam versos densos de erotismo, como a descrição de Vénus no Canto II; aí regressam os passos obliterados ou velados por melindre político, no Canto IV, como o exalçamento heróico de Nuno Álvares Pereira, açoute de soberbos castelhanos, ou o anátema sobre seus irmãos arrenegados. Ora, regressam, não clandestinamente, mas em pleno dia: essas edições são dedicadas a membros do Santo Ofício (ao Doutor Rodrigo d’Acunha, Deputado do S. Ofício [maldito], em 1609 e 1612, e Inquisidor Apostólico do Santo Ofício [maldito] de Lisboa, em 1613; Ao llustríssimo, e Reverendíssimo senhor João da Silva, Capelão Mor de sua Majestade, Ordinário da Capela, Casa Real, e toda a Corte,em1633) ou a personagens gradas da hierarquia social em 1626, A João d’Almeida, do Conselho del Rei nosso Senhor; em 1631, a Duarte, filho II do Senhor Teodósio de Bargança II deste nome). Perguntar-se-á: que leitura se fez então d’Os Lusíadas? Que espírito se captou na sua letra rediviva? Fértil campo de busca acha-se nos comentários, que visavam ser a declaração verdadeira do texto, topologicamente, passo a passo, ou, com audácia hermenêutica, edificando uma compreensão global do poema. O número de comentários a Os Lusíadas, no tempo dos Filipes, não é despiciendo, como não é irrelevante o estatuto de seus autores. O pe. Pedro Mariz não consentiu que pela morte do pe. Manuel Correia tudo naufragasse, e, met[endo] a mão em sua sementeira, publicou em 1613 Os Lusíadas [...] Commentados; sorte madrasta tiveram os escólios do Chantre Manuel Severim Faria ou do pe. Luís da Silva Brito, dos quais resta táo-só vaga notícia. O crúzio Marcos de Sáo Lourenço empreendeu também o comentário d’Os Lusíadas, até.pelo menos ao Canto III, e tê-lo-á redigido ou burilado pela década de 30, altura a que remontará igualmente o extenso labor do pe. Manuel Pires Almeida.
Eclesiásticos, todos eles, enfrentaram, cada um a seu modo, a epopeia de Camões. Cada urn a seu modo e até competindo entre si: Manuel Correia-Pedro de Mariz (os dois nomes são inseparáveis, pois nunca as suas vozes exactamente se definem n’Os Lusíados [...] Commentados) desdenharam das frágeis notas inclusas nas edições de 1584 e l591; Marcos menosprezou o trabalho de Manuel Correia-Pedro de Mariz. Qranto a Manuel Pires Almeida, como se não trilhasse estrada batida, ignorando os demais, quis muito inserir a épica camoniana no contexto poético. E no entanto, acima das diferenças, mais flagrantes ou mais discretas, e acima de alguma rivalidade, detectam-se linhas de comunhão: a leitura da épica atrai uma consciência identitária, e os comentadores atiçam um sentido de fronteira e de autonomia relativamente a Espanha (a que preferem chamar, não sem ásperas conotações, Castela), alimentando a memória de conflitos e disputas.
Escusado será dizer: Os Lusíadas prestavam-se a esta leitura. As escolhas de Camões (diferentes das de um Jerónimo Corte-Real) facilitaram esse encontro apaixonado com o poema. Porque n’Os Lusíadas é de Portugal e da sua história que se trata. E porque neles o poeta não cala nem fúria nem mágoa nem decepção, entregando-se a uma exuberante euforia ou mergulhando em desânimo, como se julgava típico do homem de génio melancólico (um modelo cultural em voga) e como se julgava típico de experiências de crise, que aos olhos dos comentadores se iam revelando endémicas e os estimulavam a cotejar o passado e o presente. Assim, o elogio da qualidade estética do poema entrelaça-se com o elogio de Camões como poeta português, parte de um património de que Manuel Correia, Pedro de Mariz, Marcos de S. Lourenço, Manuel Pires de Almeida não abdicam. Com Os Lusíadas, revisitam a História e contemplam o país, sendo Marcos de S. Lourenço aquele que prima pelo desassombro. Observe-se como das estrofes preambulares faz pretexto para um lamento:

Pronostica Camões muitas prosperidades a El Rei Sebastião [...]. Mas por seus pecados e nossos saiu Camões tão bom profeta comoJoáo Mena nos bens que pronosticou a Ávaro Luna, pois a este lhe cortaram a cabeça daí a breve tempo, e a el Rei Sebastião sempre Portugal chorará sem remédio, porque com sua destruição perdeu a lusitana antiga liberdade que Camões dava por segura com sua vida. Aqui havia muito que dizer e muito mais que chorar, mas deixaremos de o fazer porque como diz Tito Lívio Lachrimae nec tunc gratae cum forte sint necessariae, as lágrimas nem então agradam quando não se escusam.

In Isabel Almeida, Siglo de Oro, Relações Hispano-Portuguesas no século XVII, Fundação Calouste Gulbenkian, Colóquio Letras, 2011.

Cortesia da FCGulbenkian/JDACT