quarta-feira, 25 de junho de 2014

Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650. Raquel Patriarca. «Iniciado desde a infância na difícil aprendizagem do seu idioma sagrado, ocupado por espaço de anos a decorar capítulos da Bíblia e livros inteiros do Talmud, o hebreu não somente trazia para a luta pela vida o intelecto…»

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O Contexto
A instalação do Tribunal do Santo Ofício
«(…) A verdade é que muitas destas posturas não são aplicadas na prática, seja por falta de controlo, seja por falta de capacidade. Pouco valor tinham as leis para coibir factos a que o uso constante trouxera a sanção do tempo. Apesar de todas as restrições e impedimentos apontados, os judeus dedicam-se a muitas das profissões e ofícios interditos e encontramos alguns detentores de títulos, bem como clérigos e religiosas. A colecta de impostos é outro caso sintomático. Muitas vezes, a Coroa, vendo-se na urgência de reunir grandes somas de dinheiro, arrendava os impostos de determinada região a uma ou outra pessoa que lhe adiantasse essas somas. Muitas das vezes essa pessoa era um judeu, que ficava a partir daí rendeiro dos impostos, o ovençal, que os ia recolhendo e deles retirando alguns lucros. A personagem do colector de impostos já era de si pouco simpática a quem se via obrigado a pagá-los. E tudo parecia agravar-se, quando quem cobrava era judeu... Outra das intermináveis queixas que o povo apresenta nas Cortes do reino prende-se com o facto de os judeus venderem bens alimentares. Em épocas de fome ou tão-só de carestia de cereais, são acusados de fazerem rarear os alimentos ou de especular nos preços. Nas Cortes de Évora-Montemor, que reuniram os representantes do reino entre 1481 e 1482, é bem patente este entendimento de que os seguidores da lei antiga trazem consigo todos os males. A peste que se fez sentir nos anos de 1482-1484 e o facto de se assistir à chegada de judeus e cristãos-novos oriundos de Castela, após a sua expulsão pelos Reis Católicos, são factores que se ligam directamente aos argumentos da população e às suas queixas. Nas palavras de Elvira Mea, começam a misturar problemas económicos com questões socioreligiosas. Judeu tornava-se sinónimo de bode-expiatório, objecto de diabolização e alvo dos juízos mais absurdos.
A acreditar em Lúcio Azevedo, o ódio das comunidades cristãs seria ainda agravado pelo comportamento que aquele autor atribui aos judeus. Iniciado desde a infância na difícil aprendizagem do seu idioma sagrado, ocupado por espaço de anos a decorar capítulos da Bíblia e livros inteiros do Talmud, o hebreu não somente trazia para a luta pela vida o intelecto muito mais desenvolvido que o competidor cristão: assumia também o exercício exclusivo das profissões científicas, visto que as lucubrações dos letrados e dos teólogos realmente em nada importavam às trivialidades do viver corrente da população. A mais elevada cultura que os judeus detinham, o seu maior sucesso na vida, a integração na sua comunidade, o exercício exclusivo de certas profissões, o seu porte altivo, constituiriam, assim, para Lúcio Azevedo, pretexto para novos e irracionais ódios. Ódios e tensões atravessam toda a Idade Média. Mas, em 1497, com a ordem do rei Manuel I de expulsão dos judeus e dos muçulmanos de Portugal e o baptismo forçado dos que ficam, a que se convencionou chamar Conversão Geral, dá-se um salto qualitativo. Francisco Bethencourt fala mesmo de ruptura com a tradição de relativa coexistência entre as três comunidades religiosas, erradicando formalmente do reino (e do império) a religião hebraica e a religião islâmica, que deixaram de dispor de templos, de livros e de enquadramento espiritual.
Nuns casos a conversão terá dado lugar a uma integração plena de judeus e muçulmanos na comunidade cristã. Noutros, a conversão formal à religião cristã significou a manutenção clandestina das respectivas crenças, atitude expressa na segunda citação. Ou seja, em público, na rua, na profissão, na igreja, é-se cristão; em privado, na exiguidade das suas casas e na intimidade das suas famílias, é-se judeu. Lúcio Azevedo apresenta esta atitude dúplice como a afronta final que os conversos faziam aos cristãos-velhos e que explicaria não só o acirrar dos ódios, como a sua transformação em explosões de violência e o carácter geral de ambos. Fortunato Almeida e Francisco Bethencourt, por vias diferentes, são bem mais moderados a este respeito. No dizer de Fortunato Almeida, os cristãos-velhos, conhecendo a fundo a história da conversão dos judeus, que tinham presenciado (…), para eles, do facto do baptismo imposto à força não derivava obrigação alguma, e os conversos haviam ficado tão judeus como eram dantes». In Raquel Patriarca, Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650 Dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2002.

Cortesia da U. do Porto/JDACT