O Contexto
A instalação do Tribunal do Santo Ofício
«(…) A verdade é que
muitas destas posturas não são aplicadas na prática, seja por falta de
controlo, seja por falta de capacidade. Pouco
valor tinham as leis para coibir factos a que o uso constante trouxera a sanção
do tempo. Apesar de todas as restrições e impedimentos apontados, os judeus
dedicam-se a muitas das profissões e ofícios interditos e encontramos alguns detentores
de títulos, bem como clérigos e religiosas. A colecta de impostos é outro caso
sintomático. Muitas vezes, a Coroa, vendo-se na urgência de reunir grandes
somas de dinheiro, arrendava os impostos de determinada região a uma ou outra
pessoa que lhe adiantasse essas somas. Muitas das vezes essa pessoa era um
judeu, que ficava a partir daí rendeiro dos impostos, o ovençal, que os ia
recolhendo e deles retirando alguns lucros. A personagem do colector de
impostos já era de si pouco simpática a quem se via obrigado a pagá-los. E tudo
parecia agravar-se, quando quem cobrava era judeu... Outra das intermináveis
queixas que o povo apresenta nas Cortes do reino prende-se com o facto de os
judeus venderem bens alimentares. Em épocas de fome ou tão-só de carestia de
cereais, são acusados de fazerem rarear os alimentos ou de especular nos
preços. Nas Cortes de Évora-Montemor, que reuniram os representantes do
reino entre 1481 e 1482, é bem patente este entendimento de que os seguidores da lei
antiga trazem consigo todos os males. A peste que se fez sentir nos anos de 1482-1484
e o facto de se assistir à chegada de judeus e cristãos-novos oriundos de
Castela, após a sua expulsão pelos Reis Católicos, são factores que se ligam directamente
aos argumentos da população e às suas queixas. Nas palavras de Elvira Mea,
começam a misturar problemas económicos com
questões socioreligiosas. Judeu tornava-se sinónimo de bode-expiatório, objecto
de diabolização e alvo dos juízos mais absurdos.
A acreditar em Lúcio
Azevedo, o ódio das comunidades cristãs seria ainda agravado pelo
comportamento que aquele autor atribui aos judeus. Iniciado desde a infância na difícil aprendizagem do seu idioma
sagrado, ocupado por espaço de anos a decorar capítulos da Bíblia e livros
inteiros do Talmud, o hebreu não somente trazia para a luta pela vida o
intelecto muito mais desenvolvido que o competidor cristão: assumia também o
exercício exclusivo das profissões científicas, visto que as lucubrações dos
letrados e dos teólogos realmente em nada importavam às trivialidades do viver
corrente da população. A mais elevada cultura que os judeus detinham, o seu
maior sucesso na vida, a integração na sua comunidade, o exercício exclusivo de
certas profissões, o seu porte altivo, constituiriam, assim, para Lúcio
Azevedo, pretexto para novos e irracionais ódios. Ódios e tensões atravessam
toda a Idade Média. Mas, em 1497,
com a ordem do rei Manuel I de expulsão dos judeus e dos muçulmanos de Portugal
e o baptismo forçado dos que ficam, a que se convencionou chamar Conversão
Geral, dá-se um salto qualitativo. Francisco Bethencourt fala mesmo de ruptura com a tradição de relativa
coexistência entre as três comunidades religiosas, erradicando formalmente do
reino (e do império) a religião hebraica e a religião islâmica, que deixaram de
dispor de templos, de livros e de enquadramento espiritual.
Nuns casos a conversão
terá dado lugar a uma integração plena de judeus e muçulmanos na comunidade
cristã. Noutros, a conversão formal à religião cristã significou a manutenção
clandestina das respectivas crenças, atitude expressa na segunda citação. Ou
seja, em público, na rua, na profissão, na igreja, é-se cristão; em
privado, na exiguidade das suas casas e na intimidade das suas famílias, é-se
judeu. Lúcio Azevedo apresenta esta atitude dúplice como a afronta final
que os conversos faziam aos cristãos-velhos e que explicaria não só o
acirrar dos ódios, como a sua transformação em explosões de violência e o
carácter geral de ambos. Fortunato Almeida e Francisco Bethencourt, por vias
diferentes, são bem mais moderados a este respeito. No dizer de Fortunato
Almeida, os cristãos-velhos, conhecendo a
fundo a história da conversão dos judeus, que tinham presenciado (…), para
eles, do facto do baptismo imposto à força não derivava obrigação alguma, e os
conversos haviam ficado tão judeus como eram dantes». In Raquel Patriarca, Um Estudo sobre a
Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650 Dissertação
de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
Porto, 2002.
Cortesia da U. do
Porto/JDACT