sexta-feira, 13 de junho de 2014

Identidade e política. A prostituição e o reconhecimento de um ‘métier’ no Brasil. Soraya Silveira Simões. «… os papéis que a sua vida lhe exigia e citava, o de mãe, avó, dona-de-casa e esposa, mostrando que o de ‘prostituta’ não a impedia de exercer os da vida doméstica, da mulher direita, da mulher da casa e feita para o casamento»

Cortesia de wikipedia

A prostituição e a cidade: problemas públicos e identidade social
«(…) O denominador comum de cada um desses tipos de prostituição é o lenocínio, isto é, a organização comercial que garante a prostituição de outrem. O cáften, o rufião, a cafetina, o proxeneta, o gigolô, o dono de bordel, de termas ou de casas de massagem, figuras, enfim, que possibilitam o trabalho ou vendem proteção à prostituta contra ataques de clientes ou mesmo contra agentes do Estado, são, segundo as leis brasileiras, o único aspecto criminal da prostituição. Enquanto a chamada prostituição localizada costuma ser tolerada por configurar uma espécie de cordão sanitário e região moral que responde aos interesses do poder público, a prática do trottoir, mais visível e difusa, é combatida por métodos muitas vezes violentos. Na década de 1960, a polícia da capital recolhia cerca de 80 mulheres por dia, o que, ao final do mês, somava cerca de 1400 mulheres levadas às delegacias e encaminhadas às malocas, local onde permaneciam detidas de 2 a 5 dias em condições inexistentes de higiene. Nesses recintos, eram obrigadas a dormir no chão e, frequentemente, também molestadas pelos policias que as guardavam.
A humilhação ou a obrigação de obediência são, contudo, práticas de controle igualmente disseminadas nos estabelecimentos da chamada prostituição localizada. Nessas cidadelas geridas pela figura do proxeneta, a prostituta torna-se a menina da casa. Mas, para tanto, deve ser domesticada pelos gerentes ou proprietários. No final dos anos 1950, num bordel da capital paulista, Lagenest presenciou cenas em que a cafetina humilhava publicamente prostitutas devedoras de diárias. Já em 2002, o gerente de uma casa na Vila Mimosa contou a esta etnógrafa ter agredido uma prostituta que trabalhava em seu estabelecimento, com o argumento de que a mulher fazia uso da cocaína. Com a formação das associações de prostitutas, as agressões físicas e outras humilhações, actos que marcam o processo incriminatório do sujeito, passaram a ser identificados como problemas não mais individuais, mas colectivos e principalmente concernentes aos direitos civis. Para compor e difundir esta consciência entre os membros da categoria, reuniões semanais, mensais e anuais tornaram-se uma das actividades mais importantes dessas associações.
No Rio de Janeiro, o Fórum de Profissionais do Sexo, de âmbito estadual, foi criado para ser um espaço onde as mulheres pudessem discutir questões relativas, especificamente, ao trabalho sexual e a qualidade das interacções mantidas com outros agentes durante o exercício do seu ofício. No Fórum, passaram a elaborar ainda mais suas narrativas de modo a comunicar suas experiências de modo mais adequado e, com isso, persuadir um público qualificado e cada vez mais amplo da importância de suas reivindicações. O teor fático das conversas e narrativas trazidas para este tipo de encontro em que expõem seus dramas pessoais e colectivos contribui para fortalecer a identidade e fundar a solidariedade de classe.
Num sobrado próximo ao Campo de Santana, a poucos metros da Praça Tiradentes, acontecem esporadicamente as reuniões do Fórum de Profissionais do Sexo. Numa destas, a directora, há mais de trinta anos na prostituição, informava aos vinte e dois presentes que o grupo e as reuniões tinham sido criados para acabar com a discriminação. Discursava vigorosamente sobre a importância da autoestima para o desempenho satisfatório de todos os papéis que a sua vida lhe exigia e citava, como exemplo, o de mãe, avó, dona-de-casa e esposa, mostrando que o de prostituta não a impedia de exercer aqueles representativos da vida doméstica, da mulher direita, da mulher da casa e feita para o casamento». In Soraya Silveira Simões, Identidade e política. A prostituição e o reconhecimento de um ‘métier’ no Brasil, Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.1, 2010.

Com amizade.
Cortesia de RAntropologia/JDACT