sábado, 7 de junho de 2014

Guerreiro e Monge. Romance Histórico. Campos Júnior. «Apeou-se na Ribeira. Toda a comitiva lhe seguiu o exemplo. Foi para as cavernas das naus, imóveis nos grosseiros e singelos estaleiros daquele tempo, como se fossem o truncado esqueleto de enormes paquidermes antediluvianos…»

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O Bastardo. Na Ribeira das Naus
«(…) Havia também um sentimento de piedosa comiseração por aquele extraordinário desditoso. A morte sentara-se com ele no trono. Fora a sua terrível colaboradora e era agora o espectro da sua trágica expiação. O filho que estremecia, o seu único filho legítimo, talvez o seu único amor, morrera-lhe desastrosamente, havia três anos, na ribeira de Santarém, e aquele coração, que parecia de bronze, espedaçara-se na sua imensa dor de pai! Ao vê-lo, a multidão descobriu-se e curvou-se, num espontâneo movimento de veneração. Havia entre o povo muitos judeus, que tinham sido recentemente expulsos de Espanha, com iníqua ferocidade. Dera-lhes El-rei guarda, contra a maioria de votos dos seus conselheiros. Os pobres expulsos curvavam-se, sinceramente gratos, diante daquele rei tolerante. O rei João II volvia para a multidão um olhar de falso júbilo e mascarava em sorrisos, que eram como esgares dolorosos, o drama sombrio que trazia dentro de si. Olhai quanto El-rei vem mudado!, segredava-se entre a multidão. - As barbas de um velho! - Tão rosado era, e vem mais amarelo que um círio! - É a peçonha que lhe deram na Fonte Coberta que anda a trabalhar com ele! Não o matou logo, mas lá o vai queimando por dentro.
Mal empregado, que é um homem às direitas e tem sido o amparo dos que não são fidalgos nem clérigos. Compreendia-se este interesse do povo, como se explicava a sua curiosidade. Andara João II por largo tempo afastado de Lisboa, cuidando da sua saúde, profundamente abalada. Regressara à capital, havia alguns dias apenas, e fizera constar que iria à Ribeira ver as naus e dar-lhes nome. Aparecia ao povo pela primeira vez depois de uma larga ausência; aparecia-lhe solenemente, com aquela grandeza de representação que ele julgava o culto exterior da sua dura e trágica vitória de outros tempos! Apeou-se na Ribeira. Toda a comitiva lhe seguiu o exemplo.
Foi para as cavernas das naus, imóveis nos grosseiros e singelos estaleiros daquele tempo, como se fossem o truncado esqueleto de enormes paquidermes antediluvianos, foi para elas que o Rei volveu o seu primeiro olhar, e como que um estranho clarão de júbilo lhe fulgiu nas amortecidas pupilas. Foi um demorado olhar. Se a morte, pensava João II, se essa lúgubre companheira que a toda a parte o seguia, como trágica sombra da sua própria figura, o não levasse em poucos anos, iriam as derradeiras esperanças do seu coração espedaçado e a última grande ambição da sua vida tormentosa dentro do cavername daqueles navios, como dentro do tórax de um gigante. E na volta da Índia, rasgado o rútilo caminho, que espantosa glória não seria a sua, se lhe fosse dado ver a esvoaçar nos mastros daquelas naus, esfarrapada talvez pelas ventanias do Cabo, requeimada pelo sol do Levante, mareada pela espuma das ondas, a ínclita bandeira da terra portuguesa, transmudada em lábaro imortal da civilização cristã! Fora nos deslumbramentos deste sonho, que a espaços lhe iluminava docemente a alma entenebrecida, como um raio de sol pode esclarecer e acalentar os gélidos muros de um cárcere; fora em um desses deslumbramentos que o Rei decidira a sua visita à Ribeira, por tal arte que aos olhos do povo tivesse a significação de um grande e faustoso acontecimento. Assim se iria consagrando o seu plano, ainda mal compreendido». ». In António Campos Júnior, Guerreiro e Monge, Romance Histórico, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1952.

Cortesia de L.R.Torres/JDACT