Reddit Quod Recipit. Imagens
das Festas de Casamento de Afonso VI
«(…) Mas interesses políticos também Castela os tinha. Não se pense que
todas as potências se uniam contra os castelhanos e que estes, impávidos e
serenos, assistiam às negociações sem moverem as suas peças no xadrez
internacional. Sousa Macedo, na altura, lembrara que a Castela interessava ter
Portugal malquisto com as potências estrangeiras (e quem não se recordava das intrigas que de Roma a Londres atingiam
a reputação dos seus embaixadores?), e o governo atacado por
rivalidades entre os próprios portugueses. E nesse dia 2 de Agosto, nessa manhã
soalheira, eram evidentes os conflitos que assaltavam a corte portuguesa. Não
se sabe se por obra e graça dos castelhanos. Ou se pela rede das
circunstâncias, cujas linhas são hoje difíceis de descoser. A verdade é que o
infante Pedro, irmão do rei e, segundo reza a lenda, o favorito da rainha D.
Luísa de Gusmão para suceder na coroa (apesar de ser o filho mais novo de
João IV), aparecia com o rosto sisudo, talvez descontente com o pouco
protagonismo que lhe estava a ser concedido na condução dos negócios políticos
do Reino. Internos e externos. Recusara, pouco tempo antes, todas as
propostas de casamento entre ele e uma princesa estrangeira que os enviados do
seu irmão e rei tinham negociado para si. Esta e outras situações tornaram bastante
tensas as relações entre ele (e o vasto grupo de nobres descontentes que
usualmente o acompanhavam) e o monarca, o seu valido e sua corte mais
restrita. Por vezes, mesmo agressivas. Parece que no segundo dia de Agosto
tinha havido uma altercação entre ambos os irmãos, que terminara numa troca
mais desagradável de palavras, durante a qual Pedro anunciara ao rei a sua intenção de abandonar a corte
de Lisboa, o mais depressa que lhe fosse possível. Ao que o rei lhe respondera
que não o mandava por preceito, mas que
se podia ir por sua vontade.
É certo que, como sempre, aliás, os relatos não são consonantes quanto
a este ponto. Para alguns, as relações não eram tão tensas como constava e o
rei amava verdadeiramente o infante, apesar de ser mal influenciado pelos seus
ministros, especialmente pelo todo-poderoso conde de Castelo Melhor e o secretário
de Estado, António Sousa Macedo. Mas para outros, o rei era francamente mau de coração,
incapaz de amar alguém, nutrindo ódio e inveja por todos e especialmente por Pedro, mais belo do que ele e
mais amado tanto pelos nobres cortesãos como pelos povos da cidade de Lisboa. Mesmo
no estrangeiro, esta última imagem estava veiculada. L’esprit bas, l’humeur sombre et farouche de Afonso VI..., a
própria rainha já disso devia ter conhecimento. E enquanto o rei era aloirado e
débil, devido às febres que tivera na infância e que desde cedo o tinham
incapacitado fisicamente (e mesmo psicologicamente, segundo muitos, de entre os
quais se contavam alguns médicos), o infante era muito robusto, e bizarro no corpo,
e a cor do rosto era mais de cigano do que de flamengo. Que impressão teriam estes traços físicos
causado à dama francesa habituada aos requintes da corte do Rei Sol? Rainha cuja beleza ninguém se cansava de
elogiar?
Qualquer que ela tivesse sido, uma coisa parece provável, gerir a situação
não deve ter sido nada fácil. Talvez também por isso, António Sousa Macedo se tivesse
desdobrado em esforços no sentido de que nada falhasse nesses dias. Era
importante mostrar, tanto a nível externo como interno, que o governo era
capaz, que a guerra prosseguia a bom ritmo, que o reino não estava enfraquecido,
que a realeza se amava e que, à sua imagem e semelhança, era amada pelos seus
povos. A exaltação do amor que unia os súbditos portugueses aos seus reis era um
tópico que atravessava décadas e que, obviamente, era ressuscitado em cada
evento desta índole. A organização de todo o programa terá sido da
responsabilidade de Macedo, mas ainda assim, não é seguro dizer que somente uma
linha programática envolvia o evento. Contudo, restam-nos vários testemunhos
das iniciativas de Sousa Macedo nesse sentido. Competia-lhe fazê-lo, dado o seu
ofício de secretário de Estado. Mas ter-se-ia tal tarefa reduzido a uma mera formalidade,
ou a Sousa Macedo competira dar indicações sobre o modo como se deviam
manifestar os povos de Lisboa durante os festejos, e sobre os conteúdos das
pinturas que iriam inevitavelmente cobrir
os arcos a construir para as celebrações?» In Ângela Barreto Xavier, Pedro
Cardim, Fernando Bouza Álvarez, Festas que se fizeram pelo Casamento do rei
Afonso VI, Quetzal Editores, Lisboa, 1996, ISBN 972-564-268-6.
Cortesia de Quetzal/JDACT