«O meu avô, homem alto e magro, de cara larga, ossuda e um tanto avermelhada,
olhos claros e quase sempre tristes, tinha o costume de levantar as
sobrancelhas espessas quando dizia alguma coisa importante. Isso impressionava-me;
achava bonito, talvez extravagante e por isso mais me desgostava ver-lhe as
pingas de sopa presas no grande bigode pendente pare cada lado da boca. Não ligava
com ele, sempre apurado e cheio de brio, que penteava o seu cabelo grisalho,
muito farto, com o máximo cuidado. Limpa
a boca, avô, dizia eu. Ora, ora,
respondia ele. A avó contrastava com a figura esguia e imponente do avô. Era
baixa, multo baixa mesmo, tinha uma cara miúda, cheia de rugas, e puxava o cabelo
branco para cima da cabeça onde o juntava num, puxozinho redondo apertado. Se
tivesse vivido na Península e sido pobre, não teria necessitado da rodilha para
transportar carretos na cabeça. Usava sempre vestidos escuros que cobria, em casa,
com um avental da cor da cinza.
Eu, a julgar pelas velhas fotografias, não passava duma menina frágil,
de cabelo loiro. Nas feições lisas, infantis, retocadas pelo fotógrafo da
aldeia, não descubro mais nada que valha a pena destacar. Vivíamos os três numa
pequena casa com a varanda deitada sobre a rua e coberta com vides. Ali minha
avó passava as tardes de Verão a fazer meia ou a costurar. Ao certo não me
recordo se ela costurava, mas suponho que o fazia, pois não me lembro de
nenhuma costureira que lhe tivesse feito esse serviço. Seja como for: que fazia
meia nunca o poderei esquecer. Vejo-a sentada na cadeira de espaldar, as
agulhas a baterem rapidamente, enquanto observava o que se ia passando na rua.
Tão treinada estava em fazer meia que nem precisava de olhar. Aliás, as meias
eram infalivelmente pretas, fossem para ela própria, para o avô ou para mim.
Por isso eu, apesar de tão pequena ainda, tinha de andar sempre de meias
pretas. Isso causava-lhe desgosto porque nenhuma das crianças com quem convivia
usava meias pretas e eu queria ser igual a elas. Cheguei a falar à avó nesse
meu desgosto, mas ela repreendeu-me: - Não digas tolices, Rose. Se as outras
crianças não usam meias pretas é porque as mães-delas não sabem ser práticas e
económicas. Eis duas palavras que, cedo, aprendi a detestar: prático e económico.
Da varanda entrava-se, por uma porta alta e escura, para o corredor
estreito e comprido, género funil. Das duas grandes plantas, em vasos pintados
de roxo, a cada lado dessa porta, ficou-me gravado, na memória o seu cheiro
triste, quase fúnebre. Talvez elas tivessem esse cheiro por nunca darem flores
ou por as suas folhas fininhas serem tão profundamente escuras. Mas é difícil
adivinhar quais os sentimentos e as reacções íntimas das plantas. O armário
enorme, encostado à parede, também se me gravou na memória. Dum castanho tão
brilhante como um espelho, e tão imponente, pelo seu tamanho, chegava a ser
misterioso. Só a avó lá podia mexer. Abria-o com uma das chaves que trazia, num
molho; no bolso do avental. Por vezes, chamava-me para me mostrar aquilo que
considerava a coisa mais preciosa duma dona de casa: a roupa branca. A dela era
toda de linho caseiro e, portanto, são só bonita como também resistente, o que
levava a avó a profetizar que eu, depois de crescida e já dona de casa, ainda
me deleitaria com os lençóis de entremeios feitos à mão, das toalhas,
toalhinhas, guardanapos, toalhas de rosto e de cozinha. Eu fazia um esforço
para conseguir apreciar toda aquela brancura, mas o único encanto que lhe conseguia
encontrar era o cheiro. É que minha avó costumava encher saquinhos com alfazema
e metê-los por entre as peças de roupa, que cheiravam a campos e relvados
floridos». In Ilse Losa, O Mundo em que Vivi, Portugália Editora, Lisboa,
Memórias, 1964.
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