terça-feira, 24 de junho de 2014

Antes da Guerra (1902-1904). Cartas do Japão. 1902. Wenceslau de Moraes. «Ouso convidar insistentemente esse ‘alguem’ susceptivel do capricho de dar um pontapé na rotina e de tentar um mercado novo; com a coragem, pouco vulgar em portuguezes de hoje, de agarrar n’uma mala, de dizer adeus, por seis mezes, á família…»

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23 de Abril de 1902. Géneros portuguezes negociáveis
«(…) A cortiça é aqui muito procurada para diferentes industrias, incluindo a de artigos de navegação; havendo importantes fabricas de cerveja e de aguas mineraes, das quaes se faz grande consumo, e fabricando-se também muitos medicamentos, que reclamam frascos rolhados, comprehende-se que as rolhas constituam também um producto de importância muito notavel; cortiça e rolhas téem vindo acaso excepcionalmente de Portugal, sendo as firmas estrangeiras do Japão que mandam vir o género da Allemanha, da França, da Inglaterra, etc, embora em muitos casos elle provenha originariamente da nossa terra. Aviso aos negociantes portuguezes de cortiça.
Deveria experimentar-se o commercio das nossas conservas, exclusivamente representadas no Japão por algumas latas de sardinhas, e estas apenas nas lojas chinezas, que as importaram não se sabe como, de Macau? de Hong-Kong? Em Yokohama, em Kobe, em Nagasaki, abundam conservas europeias e americanas, de fructas, de vegetaes, etc.; se os fabricantes portuguezes não forem muito exigentes em preços, de modo que os nossos artigos possam competir com os estrangeiros, devem aqui ser bem recebidos. Porque não tentam os negociantes portuguezes de Macau e de Hong-Kong a introdução no Japão do excellente café de Timor, em vez de deixal-o ir para Macassar e outros pontos das colónias hollandezas, onde perde o nome e as qualidades, pois passa a ser misturado a cafés inferiores? A resposta é bem simples: porque não querem. Pois, deveriam querer, compenetrando-se de que, na época actual, o bem estar individual e da familia, e, consequentemente, da pátria, só se alcança á custa de trabalho perseverante e de lucta de competições. Confiar na boa fortuna de um bilhete de loteria premiado, ou na benevolência de Deus (que ha muito se deixou de proteger indolencias), é mau negocio. Os commerciantes do reino poderiam tentar a introducção do café africano, bem como de outros artigos coloniaes; poderiam e deveriam.

16 de Maio de 1902
Indiquei, na minha correspondência anterior, quaes os artigos portuguezes que julgo poderão ser melhor recebidos no mercado do Japão, no intuito de estreitar as relações de commercio directo entre os dois paizes. Tratarei hoje dos artigos japonezes, que mais bem acceitos podem ser em Portugal; mas a tarefa é mais difficil, pela variedade dos productos, e a escolha só poderá ser feita, com boas probabilidades de êxito, quando os nossos negociantes adquiram no Japão correspondentes muito zelosos e pacientes, ou, o que melhor será, quando aqui venham portuguezes, commissionados pelas firmas mercantis portuguezas, afim de estudarem attentamente o assumpto, o que me parece valer bem a pena. Julgo que o arroz japonez (um dos melhores do mundo), a cera vegetal (substituindo a stearina e productos análogos), a camphora, etc, poderão vantajosamente ser importados no nosso mercado.
Com referencia aos artigos da industria indigena, direi que uma grande variedade d’elles, recommendaveis pela sua barateza, pelo bom gosto do fabrico, pela novidade que constituiriam nos centros portuguezes de consumo, devem ser introduzidos em Portugal. No numero d’esses artefactos devem especialmente citar-se as esteiras, a palha em trança, as fazendas de seda, o crepe de seda, o crepe de algodão, os leques e ventarolas (que agora chegara ahi por intermédio da Hespanha), os objectos de porcellana e de charão, os álbuns, as photographias, o papel, os brinquedos, as quinquilharias, uma lista interminável de deliciosas bugigangas, caracterizadas pela fina feição artística que este povo de artistas sabe imprimir a todos os objectos da sua industria, por mais communs e baixos em preço que elles sejam.
Já vêem, por esta ligeiríssima resenha, que a difficuldade está na escolha, tornando-se evidente quanto util seria para o nosso commercio que algum negociante portuguez se desse á empreza de vir ao Japão vêr pelos seus olhos, fazer a sua selecção e adquirir relações commerciaes, que mais tarde muitas vantagens lhe dariam. Offerece-se em breve occasião excepcionalmente favorável para pôr em prática tal intento : a exposição de Osaka. Ouso convidar insistentemente esse alguem susceptivel do capricho de dar um pontapé na rotina e de tentar um mercado novo; sobretudo, com a coragem bastante, pouco vulgar em portuguezes de hoje, de agarrar n’uma mala, de dizer adeus, por seis mezes, á familia e de vir dissipar spleens em paizagens exóticas e distantes ; ouso convidar esse alguem, se existe, a vir ao Japão, na Primavera próxima». In Wenceslau de Moraes, Cartas do Japão, Antes da Guerra (1902-1904), prefácio de Bento Carqueja, Livraria Magalhães & Moniz, Editora, Oficinas do Comércio do Porto, Porto, 1904.

Cortesia de L. Moniz/JDACT