O Contexto
Notas sobre as mentalidades nos séculos XVI e XVII
«(…) Mas contradizendo
as normas, a prática real e quotidiana, no que toca às relações mais íntimas,
apresenta duas vertentes distintas: uma marcada pelo acto sexual moderado e
frequentemente sem amor, com vista à procriação; e outra, de relações
extraconjugais, que se abrem à afectividade e ao prazer. No que toca a comportamentos
sexuais como a sodomia e o pecado nefando, além de proibidos, são profundamente
condenáveis do ponto de vista moral. Apesar disso, estes práticas continuam a
ser frequentes. O século XVI é marcado pelo medo dos três demónios tradicionais: a fome, a peste e a guerra.
É de algum modo relacionado com estes factores que o movimento de perseguição a
minorias, nomeadamente aos judeus, se agudiza. O homem desta época vive
permanentemente assolado pelo medo, sendo permeável a manipulações ideológicas veiculadas
pelos sermões inflamados do púlpito. Por outro lado, não encontra total
conforto na vivência religiosa, porque se vai também fermentando o temor de
Deus, dos seus insondáveis desígnios, da punição divina, da morte, do juízo
final. A morte está, além disso, omnipresente. As pestes, a violência, a fome,
as penas de morte e talhamento de membros, as altas taxas de mortalidade
infantil, apresentam cenários de morte a todo o momento e em toda a parte.
Assiste-se a uma progressiva mudança da forma de entender a morte, que tende a
deixar de ser uma obcessão macabra, mudança acompanhada pelas Artes moriendis (os tratados
da boa morte), sendo agora aceite como algo de fundamentalmente humano, a prova suprema que o homem tem de enfrentar.
Em contraponto, existem
as festas, populares e, por definição, profanas, quase carnavalescas,
transbordantes de riso e exuberância, numa tentativa inconsciente de inversão
dos valores do quotidiano. Esta presença do profano é tão real como a presença
do religioso. Os messianismos e as manifestações privadas ou colectivas de
misticismos exacerbados e quase heréticos são disso exemplo. Na verdade, o homem do século XVI e XVII é
supersticioso, envolvendo-se muitas vezes em magias, astrologias e
feitiçarias, na tentativa de controlar o incontrolável: a sua vida. Este homem
vive um quotidiano violento, cruel e intolerante. A sobrevivência é um problema
diário para a grande maioria. As pessoas sentem-se frágeis, pessimistas quando
tentam vislumbrar o seu futuro, tornando-se quase obcecadas pela ideia de
fortuna e sina. Por outro lado, a existência de um destino pré-traçado para
cada indivíduo, desresponsabiliza-o das suas escolhas e desculpabiliza-o dos seus
pecados. Mas a culpa persiste, teimosa, levando-o ao confessionário, para ele um
alívio temporário, para a Igreja o veículo, por excelência, de controlo das mentalidades.
O sentimento de culpa, sempre associado ao de pecado, constituem vectores de
extrema força e carregados de grande negatividade, que norteiam as vidas de toda
a gente. Vive-se ainda num permanente
estado de confusão entre o sagrado e o profano, entre o real e o irreal, entre
o pecado e o prazer, entre o terror e o fascínio, entre a medicina e a bruxaria.
É este antagonismo e esta contradição constantes, quer em toda uma época, quer
na vida dos indivíduos.
Sei que a minha alma tem o poder de tudo conhecer
e, no entanto, ela é cega e tudo ignora;
sei que sou um dos pequenos reis da Natureza
e, no entanto, o escravo das coisas mais baixas e vis;
sei que a minha vida é apenas dor e instante.
Sei que os meus sentidos me enganam como um homem
ao mesmo tempo orgulhoso e miserável.
Facto que vem alterar muitas
das concepções vigentes é o movimento dos Descobrimentos. Não sendo um movimento artístico, filosófico ou
ideológico, representa uma mudança diferente e efectiva nas vivências. As
noções de espaço, mais alargadas e abrangentes, passam a estar intimamente
ligadas com os aspectos de geo-estratégia política e económica. A partir daqui,
estados e nações não se restringem às suas fronteiras, abarcando territórios
para lá do mar oceano. As possibilidades económicas (de exploração e comércio
de novos recursos bem como de escoamento de produtos) abrem-se em leques
inesperados de oportunidade e riqueza. A simples descoberta de novos
territórios, de características absolutamente desconhecidas até então, e o
contacto com outros povos de diferentes culturas e costumes, provocam nas
populações desta época mudanças de perspectiva e entendimento». In Raquel Patriarca, Um Estudo sobre a
Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650 Dissertação
de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
Porto, 2002.
Cortesia da U. do
Porto/JDACT