O Contexto
A instalação do Tribunal do Santo Ofício
«(…) Por sua vez, Francisco
Bethencourt reconhece que os motins são geralmente
reveladores de pulsões profundas de carácter étnico que escapam ao controlo das
elites políticas e sociais. Mas
não tem dúvidas em afirmar que não existiram
revoltas ou motins antijudaicos (ou melhor, anticristãos-novos) em número suficiente
para se falar de um mal-estar geral em relação aos recém-convertidos. Os
conflitos tiveram carácter pontual, local, e foram de escassa dimensão. Os únicos
com real importância ocorreram em Lisboa em 1504 e 1506. Em resumo,
a intolerância religiosa e o ódio intestino entre as duas comunidades pareciam
ser menores ou pelo menos mais relativos do que Lúcio Azevedo afirma, uma vez
que, no dizer de Fortunado Almeida, até as comunidades cristãs-velhas
reconhecem que do baptismo imposto à
força não derivava obrigação alguma. E, para Bethencourt, nem o ódio seria
geral, haveria antes facções pró e anti-judaicas, nem os motins e as revoltas
anti-cristãos novos seriam em número avassalador. Aliás, Bethencourt inverte a
ordem dos factores. Não é a duplicidade dos recém-convertidos que está na
origem das explosões de violência por parte dos cristãos-velhos, mas sim a
conversão forçada que provoca, alimenta ou abre o caminho às manifestações de
violência e aos motins.
Expulsão e conversão
geral decididas por Manuel I só são explicáveis, no dizer de Bethencourt, se
forem inseridas no contexto peninsular, para o qual aponta três acontecimentos
maiores: a conquista pelos Reis Católicos, em 1392, do Reino de Granada (último reduto muçulmano da Península); a
expulsão, nesse mesmo ano, pelos mesmos Reis Católicos, dos judeus dos seus
territórios, com a consequente entrada de dezenas de milhares de judeus em
Portugal; e as negociações entre as coroas portuguesa e castelhana com
vista ao casamento do rei Manuel com a princesa D. Isabel. A acreditar nos
dados de Lúcio Azevedo, em 1492,
portanto antes da ordem de expulsão por Manuel I, existiriam em Portugal 195
000 judeus. Com a expulsão, teriam abandonado Portugal 5 000. Os
restantes 190 000 teriam permanecido no reino e sido objecto da conversão
forçada.
Não é porém a
desproporção entre os que partem (5 000) e os que ficam e são
convertidos à força (190 000) que leva Francisco Bethencourt a declarar
que facto histórico é a conversão geral e não propriamente a expulsão. O
carácter histórico atribuído à primeira decorre dos meios nela utilizados e das
implicações e consequências que aquela provocou. Os meios, segundo o mesmo
autor, foram violentos e perversos: sequestro
de filhos, condicionamento dos transportes e redução dos residentes à condição
de escravos». A conversão, tendo implicado o lançamento da suspeição sobre
toda a comunidade de convertidos, teve duas consequências. A primeira foi de
natureza linguística e prende-se com a criação da denominação cristão-novo
ou converso
(termo também empregue na primeira geração de baptizados), que passou a
funcionar como classificação pejorativa
de um grupo social de excluídos de carácter étnico-religioso, criando uma
espécie de gueto mental. A segunda consequência foi de ordem política, com
a irrupção de motins de cristãos-velhos contra
os convertidos à força, de que os mais graves são os já citados motins de Lisboa
em 1504 e 1506.
É verdade que em 1497 Manuel I tinha ordenado que nenhum
cristão-novo fosse inquirido ou julgado por crimes contra a fé, reafirmando a
total igualdade de direitos e deveres entre cristãos-novos e velhos, igualdade
que, segundo Lúcio Azevedo, embora muito parcialmente posta em prática, daria
lugar a novas invejas e queixas e geraria novos ódios e violências. Aquela
postura, que será confirmada mais tarde, em 1507, e que, em 1512,
será prorrogada por mais 16 anos, visava, entre outras coisas, impedir a saída
maciça dos conversos de Portugal com os seus bens e fazendas. Mas no que toca à restante legislação, assiste-se a um
acentuar da segregação de que eram alvo os judeus, transposta agora para os
recém-nascidos cristãos-novos. Em 1499
instala-se a proibição de se ausentarem do país sem um salvo conduto régio. E,
se antes era proibido o casamento entre judeus e cristãos, surge agora uma
postura que proíbe o casamento entre cristãos-novos e cristãos-velhos.
Embora a Conversão
Geral de 1497 implicasse tornar
todos os cristãos, velhos e novos, iguais perante a lei e a Igreja, tal
não foi de todo atingido. É ainda no já citado contexto peninsular e a
exemplo do que os Reis Católicos tinham obtido do Papa que o rei Manuel I pede
à Santa Sé a instalação da Inquisição (maldita)
em Portugal». In Raquel
Patriarca, Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de
Setúbal, 1536-1650 Dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, Porto, 2002.
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