segunda-feira, 2 de junho de 2014

História Alegre de Portugal. Pinheiro Chagas. «Melhor para elas, ouviu!, redarguiu a velha. Que pena que não vivesses nesse tempo para atares os cabelos com uma fita, quando fosses para a guerra! Como o Zé Caneira era calvo, uma gargalhada geral acolheu a observação da tia Margarida»

jdact e elenakukanova

Primeiro Serão
«Meus amigos, começou o João da Agualva, é de saber que esta terra em que nós vivemos nem sempre foi Portugal, e, se alguém se lembrasse de falar, aqui há coisa de uns três ou quatro mil anos ou mesmo só de mil anos, em Portugal e em portugueses, havia de ver como todos ficavam embasbacados sem perceber patavina. Isto lá para os antigos era tudo Espanha, desde os cocurutos dos Pirenéus, que são uns montes que separam a Espanha da França, até essas águas do mar que cercam por todos os lados a nossa terra, mais a dos espanhóis, e até por estar este pedação de terra cercado de água por toda a parte, menos pela banda dos Pirenéus, é que se chama a isto península, que quer dizer uma coisa que é quase uma ilha, mas que o não vem a ser de todo. - Bem sei, bem sei!, península é onde houve uma guerra em que entrou meu avô!, exclamou o falador do Manuel da Idanha. - Mete a viola no saco, Manuel, quem muito fala pouco acerta. Lá chegaremos á guerra da península. Roma e Pavia não se fez num dia. Pois então, vá lá vossemecê contando a sua história. Como eu ia dizendo, esta península, a que se chama Espanha e Portugal, era então só Espanha. Espanhóis éramos nós todos... - Menos eu!, acudiu o Bartolomeu, levantando-se todo furioso, espanhol é que nunca fui, nem sou, nem serei, vai aqui tudo raso, se... Espera, homem de Deus! Que tem que tudo isto fosse espanhol se nunca mais o há de ser? Também a Espanha, e a França, e a Inglaterra, e a Itália, e a Grécia, e o Egipto foi tudo império romano, e vai lá dizer agora a essas nações todas que se sujeitem ao mesmo governo! Também a França dantes se chamava Gália e estendia-se pela Bélgica fora, e mais pela Suíça, e, se o Gambeta, ou quem é que governa lá na França, quisesse por isso empolgar a Suíça e a Bélgica, ia aí em toda a Europa uma berraria de seiscentos demónios.
Pois sim, resmungou o Bartolomeu sentando-se de mau humor, mas não me digam a mim que eu fui espanhol. Ora, meus amigos, quem foram os que primeiro moraram cá neste canto de terra é que ninguém sabe. Seriam uns iberos, que falavam uma língua arrevesada, assim a modo semelhante á que falam hoje os espanhóis das Vascongadas que nem o demo entende? Isso é que lhes não posso dizer. O que sei é que, quando a Espanha começou a ser conhecida, havia aqui uma sucia de povos que era uma coisa por demais, turdetanos para um lado, celtiberos para outro, ilergetes para aqui, bastetanos para acolá. Estava até amanhã a dizer-lhes nomes estrambóticos, se não preferisse falar-lhes só nos nossos avós, cá nos que moraram na nossa terra. Isso é que é!, bradaram todos em côro. Pois muito bem! Saibam vocês que não era um povo só. No Algarve e num pedaço do Alentejo havia os cuneenses, no resto do Alentejo, na Estremadura e na Beira moravam os lusitanos, e lá para cima para o Douro, para o Minho e mais para Trás-os-Montes moravam os galegos. Os galegos!, exclamou o irritável Bartolomeu, veja lá como fala, João da Agualva, olhe que o pai da minha mulher veio de Trás-os-Montes, e os meus sogro não era nenhum galego, ouviu?
Valha-te Deus, Bartolomeu, então tu pensas que os galegos andam todos com o barril ás costas, e são todos uns grosseirões como os aguadeiros dos chafarizes de Lisboa? Pois digo-te, e depois to mostrarei, que de todos os povos lá das Espanhas foram os galegos os que mais depressa se poliram. Mas, cala-te boca, não vá o carro adiante dos bois, e, como tu não queres ser genro de um galego, sempre te direi que os que moravam para cá do Minho não eram da mesma casta que os de lá. Os nossos chamavam-se Brácaros e os galegos da Galiza chamavam-se Lucenses. Ainda bem!, murmurou o Bartolomeu, isso de Brácaros até parece que dá ideia de Braga. E é verdade que dá, Bartolomeu, lavre lá dois tentos. Todos se riram, e o João da Agualva continuou: Mas não imaginem que os nossos antepassados eram assim como nós, que viviam em cidades, vilas e aldeias, que andavam vestidos dos pés até á cabeça, que tinham espingardas para a caça e para a guerra. Qual carapuça! Eram uns selvagens, uns lapuzes. As armas eram lanças de cobre, e o amante pedregulho, mais uns dardos e uma espécie de escudo para se defenderem; fato pouco havia, cabelo comprido como o das mulheres, que atavam com uma fita quando tinham de ir para a guerra. As mulheres é que tinham os seus enfeites e os seus bordados, os seus vestidos compridos, etc. Pois já se vê que lá as meninas nunca podem passar sem arrebiques!, disse o Zé Caneira, relanceando um olhar malicioso para a boa tia Margarida que fiava na sua roca ao pé da lareira. Melhor para elas, ouviu!, redarguiu a velha. Que pena que não vivesses nesse tempo para atares os cabelos com uma fita, quando fosses para a guerra! Como o Zé Caneira era calvo, uma gargalhada geral acolheu a observação da tia Margarida». In Manuel Pinheiro Chagas, História Alegre de Portugal.

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