domingo, 1 de junho de 2014

Está Tudo Ligado. O Poder da Música. Daniel Barenboim. «Em linguagem filosófica, poder-se-ia chamar a diferença entre ser e devir. A abertura da Sonata Patética, Op.13, de Beethoven, é um caso óbvio de interrupção do silêncio. O acorde, muito preciso, interrompe o silêncio e a música começa»

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Som e Pensamento
«(…) Consideremos em primeiro lugar o fenómeno físico que nos permite usufruir de uma peça de música, o som. Aqui deparamos com uma das grandes dificuldades que a definição de música levanta: a música exprime-se através do som, mas o som, em si mesmo, ainda não é música, é apenas o meio pelo qual se transmite a mensagem da música ou o seu conteúdo. Quando descrevemos o som, falamos muitas vezes em termos de cor: um som luminoso ou um som escuro. Há nisto uma grande subjectividade; o que é escuro para uma pessoa é claro para outra, e vice-versa. Mas há no som outros elementos que não são subjectivos. O som é uma realidade física que pode e deve ser objectivamente observada. Ao fazê-lo, reparamos que ele desaparece quando pára; é efémero. Não é um objecto, como uma cadeira, que podemos deixar numa sala vazia e voltar a encontrá-la no sítio onde a deixámos quando, mais tarde, lá voltamos. O som não permanece neste mundo; evapora-se no silêncio.
O som não é independente, não existe por si só, antes tem uma relação permanente, constante e inevitável com o silêncio. Neste contexto, a primeira nota não é o início, emana do silêncio que a precede. Se o som está em relação com o silêncio, que tipo de relação tem com ele? O som domina o silêncio, ou é o silêncio que domina o som? Mediante uma observação cuidadosa, verificamos que a relação entre o som e o silêncio é o equivalente à relação entre um objecto físico e a força da gravidade. Um objecto que é levantado do chão requer uma certa quantidade de energia que o mantenha à altura a que foi levantado. Se não fornecermos uma quantidade suplementar de energia, o objecto cairá ao chão, obedecendo às leis da gravidade. O mesmo se passa com o som: se não for sustentado, cai no silêncio. O músico que produz um som trá-lo literalmente para o mundo físico. Além disso, se não fornecer energia suplementar, o som morre. É assim a duração de uma nota isolada, finita. A terminologia é simples: a nota morre. E aqui podemos ter a primeira indicação clara de conteúdo na música: o desaparecimento do som pela sua transformação em silêncio é a definição do seu carácter limitado no tempo.
Certos instrumentos, em particular os de percussão, incluindo o piano, produzem sons a que nos referimos como tendo uma duração definida; por outras palavras, uma vez produzido, o som começa imediatamente a decair. Com outros, como os de corda, existem formas de sustentar o som por mais tempo do que com um instrumento de percussão: Por exemplo, mudando a direcção do arco e fazendo essa mudança com tanta suavidade que ela se torne inaudível. Sustentar o som é, em todo o caso, um acto de desafio à atracção do silêncio, que procura limitar a extensão do som. Analisemos agora as diferentes possibilidades oferecidas pelo início do som. Se houver um silêncio total antes desse início, encetamos uma peça de música que interrompe o silêncio ou evolui a partir dele. O som que interrompe o silêncio representa uma alteração radical de uma situação existente, ao passo que o som que evolui a partir do silêncio constitui uma alteração gradual da situação existente. Em linguagem filosófica, poder-se-ia chamar a isto a diferença entre ser e devir. A abertura da Sonata Patética, Op.13, de Beethoven, é um caso óbvio de interrupção do silêncio. O acorde, muito preciso, interrompe o silêncio e a música começa. O prelúdio de Tristão e Isolda é um exemplo claro de som que evolui a partir do silêncio.
A música não começa com o movimento do Lá inicial para o Fá, mas do silêncio para o Lá. Ou, no caso da Sonata para Piano Op. 109, de Beethoven, temos a sensação de que a música começou antes, é como se entrássemos num comboio que já está em andamento. A música já tem de existir na cabeça do pianista porque, quando ele toca, cria uma impressão de que se incorpora numa coisa que já existe, embora não no mundo físico. Na Sonata Patética, a acentuação na primeira nota marca uma ruptura muito nítida como silêncio. Na Op.109 é imperativo não começar com um acento na primeira nota, porque o acento, por definição, iria interromper o silêncio». In Daniel Barenboim, Everything is Connected, ThePower of Music, 2007, Está Tudo Ligado. O Poder da Música, Editorial Bizâncio, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-53-0434-1.

Cortesia de Bizâncio/JDACT