«(…) Daquele aconchego agasalhante, dado a peregrino de longe que vinha
pedir pousada, tomei boa nota para a vida, evocando, da memória, os versos de
ouro de Pitágoras, quando impõem o dever de honrar os pais e de agradecer a
hospitalidade do estalajadeiro. Agora, em triunvirato, o Garcia, eu
e o Mário Rainho continuamos a nova rota traçada por via de destinos e
de circunstâncias, enleados de redes de sentimentos e de olhares, que o andar
dos passos mostraram ser comuns. O Mário Rainho aproveitou para me levar
às Casas Amarelas, que mais não eram
do que a sede do poder judicial, onde também estava instalada a Conservatória
Registral, que ele próprio personalizava. De notável espírito de observação,
era ali, por dentro daquelas janelas de guilhotina, o seu terreiro
profissional, onde a sua vocação se professava, à lente, a analisar os
documentos e cartas públicas do notário de Marvão, que, todas as semanas,
desapiedadamente, lhe deixava, aos montes, fruto da sua exaração semanal, com
letra miudinha, o que o obrigava a levantar, obliquamente, os óculos, para enxergar
as certezas daquelas verdades declaradas.
Haveria eu de lembrar por muitos anos a sua assinatura, com uma grande
cauda sobreposta e alongada, quase elíptica, a abranger o seu nome todo, que,
com o andar dos anos, de elisão em elisão, se ia sintetizando, desnudando-se
dos arredondamentos originários. No intervalo dos seus tiques registrais,
aliviava-se, com prazer, a falar de teatro, de tipografias, dos presencistas, e
muito especialmente de Adolfo Bugalho, e do irmão (Francisco Bugalho),
e de José Régio e das suas Histórias
de Mulheres, entretendo-se na discussão da lenda de misoginias, que acerca
dele se cultivavam. Os dias futuros haviam de me mostrar a sua enorme e
talentosa capacidade de interpretar papéis, de difícil tradução, na arte de representar.
Era ininterrupta a sua constância, no apelo aos elementos da sua equipa
de teatro, que dirigia, exigindo-lhes presenças, que só a luta contra o cómodo
da televisão vencia, deixando-as, livres, para o ensaio ou para a declamação. A
militância por todos os valores da sua terra faziam dele um centro de atenções,
que testemunhava a circum-navegação de todos os acontecimentos colectivos na
Vila. O Mário Rainho não era qualquer pessoa subalterna a valores do
espírito, sempre rente ao saber, sempre ao pé do sortilégio da beleza incandeante,
que o motivara a ser quem é, formatado pelas circunstâncias da vida, marcada
que foi, logo na infância, pelas letras que apreendera a colocar na tipografia,
umas ao lado das outras, o que lhe propiciou o amanhecente gosto pela leitura. Era um caso típico de autodidaxia,
no qual conseguiu forjar uma personalidade de vigores e robustecimentos, donde
emergem virtudes e valências, que sobrepairam à vulgar mediania, onde,
latentes, as mediocracias medram.
O Mário Rainho, agradecido ao acaso por aquele tão fortuito encontro,
contente de mim, ao lado dele e do Garcia, ao seu lado, ia ilustrando a
Vila dos seus varões ilustres, do passado e do presente, quando me sugeriu, por
ali estarmos perto, dar uma saltada à Câmara da vila, onde o Presidente
Carolino teria, com certeza, prazer em conhecer-me, e com quem eu gostaria
de falar. Que sim, que era boa ideia, e lá fomos os três, ao mesmo tempo, ao
mesmo lado, como que a gradar as ruas e os acontecimentos que se tinham
rebolado sobre elas. Seguimos pelas Carreiras
de Cima e fomos lá à frente, onde parámos, para entrar, subindo, uma grande
escadaria, que se atingia, depois de ultrapassado um precioso portão de
ferro forjado, como que a dizer do subido e superior ar daquela casa
municipal, domicílio das respostas às solicitações dos cidadãos da vila e do
seu termo. O Presidente apareceu, o Mário Rainho disse quem eu era, e
com saudações contagiantes nos cumprimentámos, com delicadezas mútuas, que o
tempo haveria de decretar duradoiras». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições
Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT