segunda-feira, 2 de junho de 2014

Singularidades de uma rapariga loura. Contos. Eça de Queirós. «Às portas dos lados os passageiros tinham posto o seu calçado para engraxar: estavam umas grossas botas de montar, enlameadas, com esporas de correia; os sapatos brancos de um caçador, botas de proprietário, de altos canos vermelhos…»

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Singularidades de uma rapariga loura
«Começou por me dizer que o seu caso era simples, e que se chamava Macário... Devo contar que conheci este homem numa estalagem do Minho. Era alto e grosso: tinha uma calva larga, luzidia e lisa, com repas brancas que se lhe eriçavam em redor: e os seus olhos pretos, com a pele em roda engelhada e amarelada, e olheiras papudas, tinham uma singular clareza e rectidão, por trás dos seus óculos redondos com aros de tartaruga. Tinha a barba rapada, o queixo saliente e resoluto. Trazia uma gravata de cetim negro apertada por trás com uma fivela; um casaco comprido cor de pinhão, com as mangas estreitas e justas e canhões de veludilho. E pela longa abertura do seu colete de seda, onde reluzia um grilhão antigo, saíam as pregas moles de uma camisa bordada. Era isto em Setembro; já as noites vinham mais cedo com uma friagem fina e seca e uma escuridão aparatosa. Eu tinha descido da diligência, fatigado, esfomeado, tiritando num cobrejão de listras escarlates.
Vinha de atravessar a serra e os seus aspectos pardos e desertos. Eram oito horas da noite. Os céus estavam pesados e sujos. E, ou fosse um certo adormecimento cerebral produzido pelo rolar monótono da diligência, ou fosse a debilidade nervosa da fadiga, ou a influência da paisagem escarpada e chata, sobre côncavo silêncio nocturno, ou a opressão da eletricidade que enchia as alturas, o facto é que eu, que sou naturalmente positivo e realista, tinha vindo tiranizado pela imaginação e pelas quimeras. Existe no fundo de cada um de nós, é certo, tão friamente educados que sejamos, um resto de misticismo; e basta às vezes uma paisagem soturna, o velho muro de um cemitério, um ermo ascético, as emolientes brancuras de um luar, para que esse fundo místico suba, se alargue como um nevoeiro, encha a alma, a sensação e a ideia, e fique assim o mais matemático, ou o mais crítico, tão triste, tão visionário, tão idealista, como um velho monge poeta. A mim, o que me lançara na quimera e no sonho fora o aspecto do Mosteiro de Restelo, que eu tinha visto, na claridade suave e outonal da tarde, na sua doce colina. Então, enquanto anoitecia, a diligência rolava continuamente ao trote esgalgado dos seus magros cavalos brancos, e o cocheiro, com o capuz do gabão enterrado na cabeça, ruminava no seu cachimbo, eu pus-me elegiacamente, ridiculamente, a considerar a esterilidade da vida: e desejava ser um monge, estar num convento, tranquilo, entre arvoredos, ou na murmurosa concavidade de um vale, e enquanto a água da cerca canta sonoramente nas bacias de pedra, ler a Imitação, e, ouvindo os rouxinóis nos loureirais, ter saudades do Céu. Não se pode ser mais estúpido. Mas eu estava assim, e atributo a esta disposição visionária a falta de espírito, a sensação, que me fez a história daquele homem dos canhões de veludinho.
A minha curiosidade começou à ceia, quando eu desfazia o peito de uma galinha afogado em arroz branco, com fatias escarlates de paio, e a criada, uma gorda e cheia de sardas, fazia espumar o vinho verde no copo, fazendo-o cair de alto de uma caneca vidrada: o homem estava de cara de mim, comendo tranquilamente a sua geleia: perguntei-lhe, com a boca cheia, o meu guardanapo de linho de Guimarães suspenso nos dedos, se ele era de Vila Real. Vivo lá. Há muitos anos, disse-me ele. Terra de mulheres bonitas, segundo me consta, disse eu. O homem calou-se. Hem?, perguntei. O homem contraiu-se num silêncio saliente. Até aí estivera alegre, rindo dilatadamente; loquaz e cheio de bonomia. Mas então imobilizou o seu sorriso fino. Compreendi que tinha tocado a carne viva de uma lembrança. Havia de certo no destino daquele velho uma mulher. Aí estava o seu melodrama ou a sua farsa, porque inconscientemente estabeleci-me na ideia de que o facto, o caso daquele homem, devera ser grotesco e exalar escárnio.
De sorte que lhe disse: - A mim têm-me afirmado que as mulheres de Vila Real são as mais bonitas do Minho. Para olhos pretos Guimarães, para corpos Santo Aleixo, para tranças os Arcos: é lá que se veem os cabelos claros cor de trigo. O homem estava calado, comendo, com os olhos baixos. Para cinturas finas Viana, para boas peles Amarante, e para isto tudo Vila Real. Eu tenho um amigo que veio casar a Vila Real. Talvez conheça. O Peixoto, um alto, de barba loura, bacharel. O Peixoto, sim, disse-me ele, olhando gravemente para mim. Veio casar a Vila Real como antigamente se ia casar à Andaluzia, questão de arranjar a fina-flor da perfeição. À sua saúde. Eu evidentemente constrangia-o, porque se ergueu, foi à janela com um passo pesado, e eu reparei então nos seus grossos sapatos de casimira com sola forte e atilhos de couro. E saiu. Quando eu pedi o meu castiçal, a criada trouxe-me um candeeiro de latão lustroso e antigo e disse; O senhor está com outro. É no nº 3. Nas estalagens do Minho, às vezes, cada quarto é um dormitório impertinente. , disse eu. O nº 3 era no fundo do corredor. Às portas dos lados os passageiros tinham posto o seu calçado para engraxar: estavam umas grossas botas de montar, enlameadas, com esporas de correia; os sapatos brancos de um caçador, botas de proprietário, de altos canos vermelhos; as botas de um padre, altas, com a sua borla de retrós; os botins cambados de bezerro, de um estudante; e a uma das portas, o nº 15, havia umas botinas de mulher, de duraque, pequeninas e finas, e ao lado as pequeninas botas de uma criança, todas coçadas e batidas, e os seus canos de pelica-mor caíam-lhe para os lados com os atacadores desatados. Todos dormiam em frente do nº 3 estavam os sapatos de casimira com atilhos: e quando abri a porta vi o homem dos canhões de veludilho, que amarrava na cabeça um lenço de seda estava com uma jaqueta curta de ramagens, uma meia de lã, grossa e alta, e os pés metidos nuns chinelos de ourelo». In Eça de Queirós, Contos.

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