segunda-feira, 30 de junho de 2014

A História Nunca Contada dos Portugueses nos Campos de Concentração. Patrícia Carvalho. «Além da morada de Michael, o documento indica que ele morreu às 15h20 do dia 24 de Julho de 1942, menos de um mês depois de chegar ao campo que, por esta altura, já se expandira para os terrenos em Birkenau e se tornara numa verdadeira máquina organizada de matar»

Luiz Ferreira numa fotografia da colecção familiar
Cortesia de nelsongarrido

Com a devida vénia ao jornal diário Público

«(…) Apesar de a deportação e morte de Michael em Auschwitz ser algo de que Alberto se recorda de ouvir falar desde criança, não sabe precisar quando é que o primo emigrou para França, nem se se casou, se teve filhos ou em que condições é que foi preso. A neta de Raquel lembra-se de a avó contar que o irmão casara e que fora denunciado aos alemães por um cunhado francês. Alberto diz que essa é uma história que também já ouviu, mas que nunca foi confirmada. Pode ter acontecido que, à semelhança de outros passageiros do comboio n.º 813, Michael Fresco tenha respondido voluntariamente à convocatória para apresentação às autoridades feita a todos os judeus estrangeiros residentes em França, a 14 de Maio de 1941, pelo regime de Vichy, e que ficaria conhecida como a rafle du billet vert. Do que não há dúvidas é que Michael Fresco residia no Quai d’Orléans, n.º 11, em Nantes, antes de ser detido. Os nazis eram meticulosos nos registos que faziam dos prisioneiros e o certificado que atesta a morte do português em Auschwitz escapou à destruição organizada de todos os registos, pelos alemães, nos últimos meses da guerra. Além da morada de Michael, o documento indica que ele morreu às 15h20 do dia 24 de Julho de 1942, menos de um mês depois de chegar ao campo que, por esta altura, já se expandira para os terrenos em Birkenau e se tornara numa verdadeira máquina organizada de matar. Para aqueles que não eram imediatamente seleccionados para as câmaras de gás, a esperança de vida era de poucos meses, Graças ao trabalho escravo que eram obrigados a suportar, à subnutrição ou às experiências médicas ali desenvolvidas.
No caso de Michael, a causa de morte apontada pelos nazis é hidropisia cardíaca. Rebecca Boehing, directora do International Tracing Service (ITS), na Alemanha, avisa que estas certidões de óbito devem ser olhadas com reserva. Muitos dos nossos documentos foram criados pelas autoridades nazis, por isso se os nazis dizem: o seu avô morreu de um ataque cardíaco, numa situação normal… Bom, não havia nada de normal em estar num campo de concentração, por isso é preciso contextualizar. Talvez tenha havido um ataque cardíaco, mas o que se passou? Que esforço foi feito antes?, questiona. Esta norte-americana, historiadora na Universidade de Maryland, Baltimore County, dirige o ITS desde Janeiro de 2013. Criado ainda antes do final da guerra, em 1943, pelos Aliados, o ITS congrega toda a documentação relativa aos campos de concentração. Estão ali fichas de nomes, listas de entrada ou de transferência dos campos, os Livros dos Mortos, em que se registavam as vítimas, as fichas de avaliação médica e as relações dos bens que os prisioneiros transportavam, cartões de identificação e, até, listas de pessoas com piolhos em determinado campo, que pormenorizam quantos piolhos foram encontrados em cada uma no dia em causa (os piolhos eram os principais transmissores de tifo, uma das doenças que mais assolaram os campos de concentração).
O ITS guarda cerca de 30 milhões de documentos relativos aos prisioneiros dos campos, aos homens e mulheres submetidos a trabalhos forçados durante o regime nazi e aos sobreviventes, que passaram pelos chamados Campos de Deslocados. Em Outubro de 2013, os seus arquivos foram classificados pela UNESCO como Memória do Mundo, pelo valor excepcional e importância para a humanidade, pelo seu contributo para o conhecimento do impacto da guerra nas pessoas. Apesar da sua longa existência, o ITS só se abriu ao público em 2007. Até aí, apenas as vítimas directas do nazismo ou os seus familiares podiam aceder à informação guardada em três edifícios na pequena cidade no centro da Alemanha, Bad Arolsen. A digitalização de um elevado número de documentos e o alargamento dos objectivos do ITS, que passaram a incluir o acesso à pesquisa académica ou jornalística, disponibilizaram um manancial de informação de um valor inestimável. Permitiu, por exemplo, que se tornasse muito fácil responder a uma pergunta que até há pouco tempo não se fazia: houve portugueses nos campos de concentração?

Campo de Auschwitz II. Luiz, o militante
Nos arquivos do ITS os dados sobre Luiz Ferreira são abundantes. Só com a leitura dos documentos produzidos pelo regime de Adolf Hitler fica-se a saber que Luiz nasceu a 18 de Outubro de 1902, em Braga, Província do Minho. Que os seus pais se chamavam Lourenço (Laurent é a forma como aparece escrito nas fichas) e Joana Ferreira (Jeanine, de acordo com os documentos alemães), nascida Oliveira. Descobre-se também que Luiz foi internado no campo de concentração de Buchenwald como prisioneiro político, com o número 69369, e que era solteiro e sem filhos. As características físicas do português, anotadas na sua ficha do campo, indicam que media 1,58 metros, pesava 61 quilos, era louro, esguio, de olhos castanhos e não tinha todos os dentes. Além disso, falava francês, português e espanhol. Já a ficha médica indica que ele tivera um acidente em 1925, que lhe deixara a mão esquerda danificada e que, em 1937, sofrera uma fractura na parte inferior da coxa direita, classificada como ferimento de guerra, o que apontava para a sua presença na Guerra Civil de Espanha (1936-1939). O nome de Luiz Ferreira aparece ainda numa lista de oito sobreviventes portugueses do campo de Buchenwald, feita pelos Aliados após a libertação». In
Patrícia Carvalho (texto) e Nelson Garrido (fotografias), jornal Público, Junho 2014.

Cortesia de O Público/JDACT