Práticas de caridade e assistência nos alvores da Modernidade.
Contextos sociais e políticos
«(…) O que se propõe nas páginas seguintes é revisitar este
processo à luz das mudanças políticas em curso. Será necessário, no entanto,
abordar previamente um outro factor, que acompanhou as reformas mencionadas e
em alguns casos as condicionou: a delimitação das condições de acesso aos
recursos de saúde e de assistência. A legislação contra a mendicidade e a vagabundagem,
não sendo uma novidade no Portugal tardo-medieval, ganhou um espaço próprio no
contexto da Peste Negra, e das outras que se lhe seguiram, e é, como se procurará
demonstrar, um dos elementos que melhor expressa a mudança de atitudes em
relação aos pobres e ao fenómeno da pobreza.
Definindo o perfil de pobre merecedor
Por maior que fosse a generosidade das instituições
religiosas e dos eclesiásticos, das elites ou do cidadão anónimo, por mais que
o pobre estivesse integrado na economia da salvação, que lhe concedia ajuda a
troco de favores espirituais, os bens disponíveis não conseguiam responder ao
crescimento do pauperismo que, desde as duas últimas décadas do século XV,
seguia a recuperação da recessão demográfica. Desenvolver meios eficazes para expulsar
os impostores, evitar o ócio e os vícios a ele associados e escolher, de entre
a multidão dos pobres, os mais merecedores, tornaram-se preocupações centrais
para as autoridades. A delimitação do conceito de pobre merecedor foi um
elemento estruturante das políticas sociais da Europa moderna, que só se entende
na articulação com as medidas contra a mobilidade e a mendicidade não
autorizadas. Neste, como em muitos outros aspectos, a Coroa portuguesa
acompanhou as suas congéneres europeias e, como estas, justificava a repressão
contra os mendigos e os vagabundos em função do que interpretava como preocupações
das populações residentes e socialmente enquadradas. São disso prova, por
exemplo, as leis contra os mendigos estrangeiros e as que reduziam os pedintes
não autorizados a uma situação de quase escravatura.
E, de facto, são vários os sinais expressando a pouca tolerância
social para com os andantes, como
expunha o povo nas Cortes de Lisboa de 1371.
Também em cortes, no início de Quinhentos, os representantes de Santarém
deixavam clara a aversão contra aqueles que nem
querem procurar mester, nem viver com outrem, declarando que quem não tinha
modo de vida conhecido só poderia viv[er]de
mal fazer. Em ambas as situações ficava explícita a recusa das comunidades
de acolherem quem não aceitasse as regras estabelecidas e pretendesse viver dos
recursos alheios; à excepção das ordens mendicantes, as populações tendiam a
encarar os pedintes como factores de desestabilização e usurpadores dos seus
bens. O facto de os espaços de apoio aos peregrinos, que também albergavam
mendigos e vagabundos, determinarem estadias curtas (regra geral não
superiores a três dias) expressa, precisamente, a desconfiança com que eram
encarados; por outro lado, verifica-se que a noção do trabalho como elemento
integrador se impôs desde cedo, conferindo à caridade uma índole marcadamente
moralista. E isto em parte explica a generosidade demonstrada para com os
trabalhadores que, sazonalmente ou de forma mais duradoura, se estabeleciam nas
localidades e mostravam ter assimilado as suas regras». In Laurinda Abreu, O Poder e os
Pobres, As Dinâmicas Políticas e Sociais da Pobreza e da Assistência em
Portugal, Séculos XVI-XVIII, Gradiva, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-616-596-3.
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