domingo, 2 de novembro de 2014

O Poder e os Pobres. Laurinda Abreu. «… os sinais expressando a pouca tolerância social para com os ‘andantes’, como expunha o povo nas Cortes de Lisboa de 1371. […] os representantes de Santarém deixavam clara a aversão contra aqueles que ‘nem querem procurar mester, nem viver com outrem’»

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Práticas de caridade e assistência nos alvores da Modernidade. Contextos sociais e políticos
«(…) O que se propõe nas páginas seguintes é revisitar este processo à luz das mudanças políticas em curso. Será necessário, no entanto, abordar previamente um outro factor, que acompanhou as reformas mencionadas e em alguns casos as condicionou: a delimitação das condições de acesso aos recursos de saúde e de assistência. A legislação contra a mendicidade e a vagabundagem, não sendo uma novidade no Portugal tardo-medieval, ganhou um espaço próprio no contexto da Peste Negra, e das outras que se lhe seguiram, e é, como se procurará demonstrar, um dos elementos que melhor expressa a mudança de atitudes em relação aos pobres e ao fenómeno da pobreza.

Definindo o perfil de pobre merecedor
Por maior que fosse a generosidade das instituições religiosas e dos eclesiásticos, das elites ou do cidadão anónimo, por mais que o pobre estivesse integrado na economia da salvação, que lhe concedia ajuda a troco de favores espirituais, os bens disponíveis não conseguiam responder ao crescimento do pauperismo que, desde as duas últimas décadas do século XV, seguia a recuperação da recessão demográfica. Desenvolver meios eficazes para expulsar os impostores, evitar o ócio e os vícios a ele associados e escolher, de entre a multidão dos pobres, os mais merecedores, tornaram-se preocupações centrais para as autoridades. A delimitação do conceito de pobre merecedor foi um elemento estruturante das políticas sociais da Europa moderna, que só se entende na articulação com as medidas contra a mobilidade e a mendicidade não autorizadas. Neste, como em muitos outros aspectos, a Coroa portuguesa acompanhou as suas congéneres europeias e, como estas, justificava a repressão contra os mendigos e os vagabundos em função do que interpretava como preocupações das populações residentes e socialmente enquadradas. São disso prova, por exemplo, as leis contra os mendigos estrangeiros e as que reduziam os pedintes não autorizados a uma situação de quase escravatura.
E, de facto, são vários os sinais expressando a pouca tolerância social para com os andantes, como expunha o povo nas Cortes de Lisboa de 1371. Também em cortes, no início de Quinhentos, os representantes de Santarém deixavam clara a aversão contra aqueles que nem querem procurar mester, nem viver com outrem, declarando que quem não tinha modo de vida conhecido só poderia viv[er]de mal fazer. Em ambas as situações ficava explícita a recusa das comunidades de acolherem quem não aceitasse as regras estabelecidas e pretendesse viver dos recursos alheios; à excepção das ordens mendicantes, as populações tendiam a encarar os pedintes como factores de desestabilização e usurpadores dos seus bens. O facto de os espaços de apoio aos peregrinos, que também albergavam mendigos e vagabundos, determinarem estadias curtas (regra geral não superiores a três dias) expressa, precisamente, a desconfiança com que eram encarados; por outro lado, verifica-se que a noção do trabalho como elemento integrador se impôs desde cedo, conferindo à caridade uma índole marcadamente moralista. E isto em parte explica a generosidade demonstrada para com os trabalhadores que, sazonalmente ou de forma mais duradoura, se estabeleciam nas localidades e mostravam ter assimilado as suas regras». In Laurinda Abreu, O Poder e os Pobres, As Dinâmicas Políticas e Sociais da Pobreza e da Assistência em Portugal, Séculos XVI-XVIII, Gradiva, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-616-596-3.

Cortesia de Gradiva/JDACT