segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O Mal-estar dos Marranos. João Medina. «… a noção de democracia, de Estado democrático, tolerante, aberto a todas as confissões religiosas e espirituais, em vez da ríspida e ibérica vertigem de um só pastor, um só rebanho e uma só lei...»

Festa de ‘Rosh Hasbanah’, Amesterdão, Picart, 1723
jdact

«Há dias veio a Baltimore, para pronunciar uma conferência sobre Espinosa, um professor israelita da Universidade de Jerusalém: falou na Johns Hopkins do marranismo de Espinosa, situando-o numa linha de heréticos judeus, entre os quais há que contar com o caso tão célebre de Uriel Costa, o cristão português que, depois de ter renegado o catolicismo para abraçar a religião dos seus, acabou por se afastar da lei de Moisés, foi censurado pelos seus correligionários, regressando humilhado ao redil religioso dos seus antepassados, e pondo fim aos seus dias através de um suicídio que exprime bem a condição de dualidade e angústia própria dos marranos. E no final da conferência de Yovel, a Ana Hatherly e eu participámos com patriótico ardor no debate que se seguiu, acabando por ficarmos sozinhos a dialogar com o espinosista de Jerusalém.
Findo o debate, trocámos os habituais cartões e promessas de nos voltarmos a encontrar um dia. Mas o que realmente me fascinou naquela conferência, e na curta mas intensa polémica que se lhe seguiu, foi precisamente o centro de toda aquela tempestade intelectual, histórica, afectiva, espiritual, o problema dos marranos, a situação existencial e histórica deles, sempre divididos entre duas leis, duas culturas, duas éticas, duas concepções do divino. Em suma, sempre divididos entre dois mundos, incapazes de pertencerem por completo a um deles. Eis aqui, pois, o caso paradigmático de Espinosa, Baruch Espinosa, filho de judeus fugidos de Portugal, acolhidos à tolerância dos protestantes na reformada Holanda, paraíso intelectual numa Europa de guerras religiosas e outras, nova Atenas da ciência e do cogito onde se discutia o cartesianismo e se esboçava já, aliás, com o contributo nada despiciendo do próprio Benito (ou Baruch), a noção de democracia, de Estado democrático, tolerante, aberto a todas as confissões religiosas e espirituais, em vez da ríspida e ibérica vertigem de um só pastor, um só rebanho e uma só lei...
Espinosa, paradigma do marranismo: antes de mais, por ter sido incapaz de aderir de todo à lei dos seus maiores. Foi herético e acabou expulso da Sinagoga no dia 27 de Julho de 1656 da era de Cristo, ou no dia 6 do mês Ab do ano de 5416 desde a mítica criação do mundo, de acordo com a cronologia da lei de Moisés. Espinosa, o herético, ou seja, o marrano. Isto é, o homem incapaz de viver integralmente a lei dos seus, demasiado céptico para aderir à fé que foi a da sua comunidade, a nação de Israel, por mais santa e digna de amor que esta fosse. Demasiado tolerante e perseguido para alguma vez poder, como o fizera Uriel, viver de acordo com a lei dos que tinham perseguido e queimado os filhos de Abraão e Jacob, a estirpe errante de David e Ashverus. Não. Espinosa, como outros heréticos aos quais o erudito Yovel dedicou um livro, era um ser intelectual e espiritualmente anfíbio, vivia entre dois mundos, não pertencendo de facto a nenhum deles. Foi, como o disse Isaac Deutscher, a propósito de homens como o filósofo holandês, o médico austríaco Freud ou o economista e pensador político chamado Marx, um judeu não judeu, expressão que profundamente desagradou a Yovel no referido debate na Johns Hopkins, devo acrescentar em guisa de nótula de rodapé...

Divididos
Sim, Espinosa foi deveras um judeu não judeu, um judeu transjudaico, alguém que vai para além da Torah, um viandante que ousa passar além da divisória tribal-espiritual própria aos filhos de Moisés, alguém que nunca se sentiu à vontade em lei religiosa nenhuma, a não ser no foro da sua consciência livre e libertadora... É isto, afinal, o que os marranos são: homens pungentemente divididos, desde os finais do século XV, entre a lei de Roma que os cercava ou empurrava para o cadafalso ou os obrigava a abjurarem para poderem salvar a pele, e a lei secreta, doravante maldita e clandestina, relíquia cada vez mais diluída de uma tribo dispersa (transferindo para o regresso do Messias a ânsia de uma reunificação final a que Herzl daria voz estentória e carismática, encarnando-a, a ponto de Zangwill ter dito, em 1904, que o sionismo significa o fim do período marrano e a revivescência do macabeísmo». In História de Portugal, João Medina, volume VII, Judeus, Inquisição e Sebastianismo, O Mal-Estar dos Marranos, SAPE, Ediclube, Alfragide, Mateu Cromo, Madrid, 2004, ISBN 972-719-275-0.

Cortesia de Ediclube/JDACT