terça-feira, 1 de janeiro de 2019

1Q84. Haruki Murakami. «Aomame caminhou com os passos firmes, a postura erecta, o queixo retraído, os olhos atentos à frente, sentindo na pele uma enxurrada de olhares sobre ela»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A mãe apenas se limitou a balançar a cabeça negativamente para, em seguida, lançar um rápido olhar de censura a Aomame. No entanto, esta foi a única voz e a única reacção percebida naqueles arredores. Os demais motoristas apenas fumavam e, como a observar algo ofuscante, acompanhavam, com as sobrancelhas levemente franzidas, os passos firmes de Aomame caminhando no vão entre os carros e o muro baixo. Eles pareciam ter suspendido temporariamente o exercício do raciocínio. Não era comum ver alguém andar pela via rápida com os carros parados. E assimilar essa cena inusitada no quotidiano era algo que levava um certo tempo para se aceitar como real. Ainda mais por se tratar de uma jovem de minissaia e salto alto.
Aomame caminhou com os passos firmes, a postura erecta, o queixo retraído, os olhos atentos à frente, sentindo na pele uma enxurrada de olhares sobre ela. Os saltos de seu Charles Jourdan castanho pisavam firmemente no pavimento ressoando batidas secas, e o vento incumbia-se de agitar as abas do seu casaco. Era Abril, mas os ventos ainda gelados traziam consigo um pressentimento hostil. Ela vestia um casaco de meia-estação bege sobre o conjunto de blazer e saia verde, de tecido fino de lã, da Junko Shimada, e carregava uma bolsa de alça de couro preta. Os seus cabelos na altura do ombro tinham um belo corte e eram bem-cuidados. Não usava nenhum tipo de acessório ou algo parecido. Tinha um metro e sessenta e oito de altura, músculos firmes, nenhum excesso de gordura, mas essa parte do corpo o casaco não deixava revelar.
Ao observar atentamente o seu rosto, notava-se que o formato e o tamanho da sua orelha direita eram consideravelmente diferentes dos da esquerda. Além de a orelha esquerda ser bem maior que a direita, era também disforme. Normalmente ninguém notava essa diferença oculta pelos cabelos. Os seus lábios, quando cerrados, desenhavam uma linha recta que lhe conferia um ar pouco expansivo. E o nariz pequeno e fino, as bochechas salientes, a testa larga, as sobrancelhas longas e rectas reforçavam ainda mais esse tipo de personalidade antissocial. Seu rosto era mais para oval. Gostos à parte, ela podia ser considerada bonita. O único porém era a extrema inexpressividade do seu rosto. Os seus lábios cerrados eram incapazes de esboçar um sorriso, a não ser em casos estritamente necessários. Seu olhar, como o de um exímio vigia de convés, era friamente indolente. E, sendo assim, o seu rosto nunca causava uma boa impressão às pessoas. Nem sempre o que chama a atenção e atrai as pessoas é o facto de a fisionomia ser bela ou feia, mas a naturalidade e o refinamento com que a pessoa sabe se expressar.
A maioria das pessoas não conseguia gravar as feições do seu rosto. Bastava desviar os olhos dela para não serem mais capazes de descrevê-lo. Digamos que, apesar do seu rosto possuir características singulares, estas, por incrível que pareça, nunca eram memorizadas. Nesse sentido, ela era como um insecto que habilmente mimetiza o ambiente. E conseguir se camuflar, mudando de cor e de formato, e, ainda, não chamar a atenção e ser uma pessoa difícil de ser lembrada era, de facto, o que Aomame mais desejava. Desde pequena, era o seu jeito de se proteger. No entanto, quando algo a desagradava, o semblante até então apático sofria uma radical transformação. Notava-se uma drástica contracção dos músculos faciais a destacar exageradamente a assimetria entre o lado direito e o esquerdo do seu rosto, um rosto que se deixava frisar por rugas bem acentuadas, olhos afundados, nariz e boca embrutecidos e tortos, queixo repuxado para um dos lados e lábios arreganhados, deixando à mostra dentes grandes e brancos. De uma hora para outra, como se a corda da máscara rebentasse, ela se transformava noutra pessoa. Os que presenciavam essa mudança ficavam aterrorizados com tão pavorosa metamorfose. O medo que eles expressavam era como o de alguém que, para fugir de algo assustador, se vê impelido a pular num abismo profundo. Por isso, diante de desconhecidos, ela se policiava para não fechar a cara». In Haruki Murakami, 1Q84, 2009, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-053-4.

Cortesia de CasadasLetras/JDACT