segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O Senhor do Falcão. Valeria Montaldi. «Aparentemente despreocupada com os entediantes discursos dos arautos, a multidão prosseguia nos seus afazeres: debaixo do enorme pórtico que constituía o rés-do-chão do palácio comunal»

Cortesia de wikipedia e jdact

Milão. 1243
«(…) Enquanto ia ruminando estes pensamentos, Matthew transpôs a Porta Cumana, que conduzia ao Broletto Novo: aqui, sobrepondo-se à algazarra da multidão, erguiam-se, fortíssimas, as vozes de dois arautos da comuna que, empoleirados num banquinho montado em frente do palácio, apregoavam, à vez, as habituais interdições que a população deveria respeitar. ... e além disto ordena-se que nenhum homem jogue ou empreste dinheiro para jogos de azar, sob pena de ter de pagar sessenta soldos de multa. Também se impõe a proibição de jogar qualquer jogo, mesmo que considerado lícito, de noite, nas estradas, nas tabernas ou em outro qualquer lugar, sendo permitido jogar apenas durante as horas do dia. No que respeita aos delitos, foi estabelecido que, independentemente do sexo a que pertencer, qualquer pessoa maior de doze anos que cometa um furto de um objecto de valor superior a seis denários pagará uma multa de vinte soldos. Alguém que prenda o ladrão e não o entregue ao arcipreste ou ao seu enviado será multado em sessenta soldos...
Aparentemente despreocupada com os entediantes discursos dos arautos, a multidão prosseguia nos seus afazeres: debaixo do enorme pórtico que constituía o rés-do-chão do palácio comunal, mercadores ricamente vestidos faziam contratos entre si, misturados com tabeliões e meirinhos provenientes dos cárceres vizinhos da Malastalla. Ajaezados com as insígnias da podestà, seis cavalos esperavam, presos aos pilares de sustentação dos arcos do pórtico, sinal de que, naquele preciso momento, estava a decorrer uma reunião de notáveis na sala superior. Os olhos de Matthew detiveram-se no relevo de pedra que uns vinte anos antes fora colocado na fachada do palácio dedicado ao regedor que dera início à construção do Broletto. O homem era representado a cavalo, numa severa atitude guerreira: a inscrição, em baixo, identificava-o como Oldrado Tresseno, sublinhando a sua importância como perseguidor de hereges. Catharos, ut debuit, uxit, citava a epígrafe: apesar da tepidez da jornada estival, o frade arrepiou-se ao ler aquelas palavras, que, mais uma vez, o faziam recuar no tempo. Até aqui, como, aliás, nas terras de França, no vale Augusta, onde quer que fosse, enfim, se falava de heresias, de homens e mulheres torturados e mortos por se terem afastado da fé de Roma.
O abade de San Simpliciano, embora não conhecendo o verdadeiro motivo que levara o frade a Itália desde a longínqua Inglaterra, recomendara-lhe cautela com os contactos pessoais que iria fazer na cidade: nestes tempos, havia-lhe dito, não era preciso muito para se ser acusado de heresia. Até os próprios membros da ordem dos humilhados haviam sofrido a censura por parte do papa, com consequentes imposições de uma nova regra canónica, dado que os seus hábitos de vida comunitária cheiravam a heresia: e, no entanto, acrescentara Arnolfo, tratava-se de confrades digníssimos que se dedicavam às mais duras tarefas agrícolas e à produção de lã, na qual eram mestres. Matthew ficara estupefacto com as palavras piedosas do abade, sabendo bem que, frequentemente, as várias ordens religiosas estavam em desacordo entre si. Arnolfo, como é evidente, apesar das suas importantes ligações com os mais variados membros do poder milanês, era um homem justo, capaz de distinguir a boa da má-fé, atento sobretudo à saúde espiritual das almas que lhe haviam sido confiadas. Nutria uma certa desconfiança relativamente aos frades menores, que, encarregados pelo arcebispo Leone da Perego de perseguir a heresia, procuravam com cruel determinação e denunciavam todo aquele que, em Milão, fosse suspeito de discordar da regra da Igreja de Roma. Com o desenvolvimento deste ingrato trabalho inquisitório colaboravam também os dominicanos: o abade havia recomendado a Matthew que se mantivesse longe dos membros destas duas ordens durante o desenrolar das pesquisas, para evitar o risco de se ver envolvido, contra a sua vontade, em manobras obscuras e perigosas». In Valeria Montaldi, O senhor do Falcão, 2003, Casa das Letras/Editorial Notícias, 2005, ISBN 978-972-461-618-6.

Cortesia de CdasLetras/Editorial Notícias/JDACT