quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

As Crianças de Cárquere. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «As moçárabes recolocaram os vestidos nas sacas e Zaida preparava-se para as acompanhar, mas o marido mandou-a ficar junto dele. Surpreendida, a princesa perguntou: que temeis? Vou só despedir-me»

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As Crianças de Cárquere. 1146
Lamego, Agosto de 1146
«(…) Uma semana mais tarde, os quatro carregaram um barco com tecidos e partiram de Montemor. Desceram a costa para sul e, após virarem o último cabo, rumaram ao rio Arade, que subiram até perto de Silves. Cuidado, avisou Ília, ao meter um pé em terra firme. Mem devia permanecer no cais fluvial, ou mesmo escondido no barco, pois os  soldados de Qasi podiam reconhecê-lo. Tendes razão..., rnurmurou o almocreve. Pouco depois, Ália, Élia e Ília entraram na cidade, decididas a dar nas vistas com a venda de tecidos. E o estratagema resultou. Tão alegres e coloridos eram os padrões exibidos que foram chamadas ao palácio, para mostrar à princesa os alifafes, as túnicas e os mantos. Tentai convencê-la a vir, pediu Mem. A meio da tarde, as três irmãs foram levadas à presença de Zaida. Teriam de ficar a sós com ela, durante as provas dos vestidos, pois só aí lhe poderiam revelar porque ali estavam.
E assim foi. Viram-na, cumprimentaram-na e despiram-na, para melhor a vestirem com alifafes transparentes. E só nesse momento de intimidade feminina a abordaram. Princesa, viemos com Mem, disse Ília. Espantada, Zaida franziu a testa. Com quem?, perguntou. Desconfiada, olhou-as demoradamente, enquanto apreciava as vestes. Eram belas, bom tecido, bom corte. Como as que Mem vendera, no passado, à sua mãe, Zulmira. Contudo, um passo em falso podia perdê-la, o marido vigiava-a
fortemente. Mem..., murmurou, como não se lembrasse. É filho de quem? Poucos conheciam a história, mas Ília recordava-se. O pai do almocreve fora degolado pelo mesmo assassin que matara a mãe de Zaida, um facínora enviado pelo antigo califa almorávida Ali Yusuf. Satisfeita com o esclarecimento, a princesa perguntou: ele está bem?
A tensão das moçárabes desanuviou-se e desataram a língua. Mem era agora cavaleiro portucalense, o rei de Portugal oferecera-lhe as ruínas de Almourol, que ele tentava restaurar. Mas só pensava nela, dizia sempre às amigas que um dia casaria com Zaida! Casar comigo?, espantou-se a princesa. Abanou a cabeça, afirmando que isso nunca iria acontecer. Ela era esposa de Ibn Qasi e ele almocreve, além de muito dado às mulheres. Isso é verdade!, riram-se as moçárabes. Franzindo o sobrolho, Zaida interrogou-as: Com as três? As moças gabaram Mem, um portento de homem. Aliás, adiantou Ília, não as filhava só a elas, mas também à barregã real, Chamoa, que recentemente partira para Tui, por ordem rainha Mafalda da Sabóia, depois de esta a apanhar a ser filhada pelo rei de Portugal.
Quanta anirnação..., murmurou Zaida. Comparada com aquele rebuliço, a sua vida em Silves era de uma penúria atroz. O marido mantinha o harém, mas ela sufocava com os véus, as regras e as rezas. Pensar noutro homem era o mesmo que condená-lo à morte. Nem sequer posso ir ao cais! Zaida só podia sair do palácio na companhia do marido. Os religiosos espreitavam em cada esquina e Silves era um ninho de denúncias. Se desejardes, Mem pode vir aqui, sugeriu Ília. A princesa recusou. Nem pensar, Mem jamais sairia vivo do palácio. Silves mudara e ela também. A opressão almóada roubara-lhe a jovialidade, o sorriso, a alegria e a liberdade. Nunca me deixarão usar estas roupas...
Pesarosa, Zaida devolveu às moçárabes os alifafes e as túnicas, no preciso momento em que a porta da sala se abriu e surgiu Ibn Qasi. Princesa!, exclamou ele. Disseram-me que três mulheres andavam por Silves a vender roupa indecente! Já estão de saída, tranquilizou-o Zaida. Não vou comprar nada. O marido exigiu que as moçárabes lhe mostrassem as vestes. Mal notou as transparências, explodiu: roupas destas são proibidas pelo Corão! Zaida ainda relembrou que Silves era uma cidade habituada a costumes mais tolerantes do que a religiosa Tinmel, o coração da fé almóada. Mas de nada lhe valeu. Isso acabou!, gritou Ibn Qasi. O Corão é só um! Furibundo, o sufi quis saber quem eram as desconhecidas e as três moçárabes obviamente mentiram-lhe. Negociavam em Lisboa e em Alcácer, mas não em Badajoz ou Beja, pois não confiavam em Ibn Wasir.
E vendeis roupa a cristãos7 - perguntou-lhes Ibn Qasi. Ainda arrependido do acordo que fizera anos antes com Afonso Henriques, o sufi vivia na ânsia de provar aos almóadas que não iria repetir tal enormidade. Odiamos essa canalhada!, garantiram em coro as três manas. Mesmo assim, Ibn Qasi proibiu-as de negociarem quaisquer vestidos em Silves ou Mértola, pois não admitia que as mulheres da sua taifa se apresentassem com indecências. As três raparigas deviam partir imediatamente para norte, antes de as leis dos almóadas serem impostas também em Lisboa, Santarém ou Álcacer. Já não falta muito para esse dia chegar!, profetizou Ibn Qasi.
As moçárabes recolocaram os vestidos nas sacas e Zaida preparava-se para as acompanhar, mas o marido mandou-a ficar junto dele. Surpreendida, a princesa perguntou: que temeis? Vou só despedir-me. Irritado, Ibn Qasi colocou-se à frente dela: fazei o que eu mando ou... De cabeça baixa, Ália, Élia, e Ília, abandonaram o local depressa, deixando para trás uma silenciosa e triste princesa. Chegadas ao cais, relataram a Mem o que se passara. Temos de partir já, defendeu Ília. Consciente de que nada mais podia fazer, o desiludido almocreve aceitou regressar a Coimbra.
Se o presente é escuro, põe a cabeça no futuro.
Quando o revi, em Dezembro, Mem continuava frustrado. Ibn Qasi é um monstro! Eu devia raptá-la!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9
                                                 
Cortesia da CasadasLetras/JDACT