O Assassin de Lisboa 1142-1143
Lisboa.
Junho de 1142
«(…) E os Mantos Vermelhos?,
perguntou Ismar ao wali. O idoso encolheu os ombros, dizendo que não
tinha autoridade sobre Orimar, e por isso sugeriu: ide convencê-lo à caverna
onde vive! Durante uma semana, Ismar e Zhakaria hesitaram. Não porque temessem
os misteriosos guerreiros, mas porque receavam dar-lhes demasiada importância.
Se Ismar fosse emir da taifa de Badajoz, já teria escorraçado aquela escória vermelha
e prendido o seu chefe, mas, não tendo autoridade política em Lisboa,
custava-lhe mendigar o apoio daqueles sacanas irresponsáveis, como lhes chamava
Zhakaria.
Gente do piorio.
Uma vez mais, foi Raimunda quem
tomou a iniciativa. Deviam seduzir o bando de Orimar, para evitar que este se aliasse
a Ibn Qasi, o senhor de Silves e marido de Zaida. O sufismo espalha-se pelo Sul
como uma doença, recordou ela, lançando um olhar acusatório a Fátima. Esta
irritou-se com a crítica implícita à irmã e berrou: a Zaida é uma traidora, um
dia teremos de guerreá-la! Mais uma vez, os ódios colaram-nos. No dia seguinte,
realizaram uma expedição à mina da Adiça, perto de Almada, e atravessaram o
Tejo de barco, à frente de duzentos homens. Depois do desembarque, apenas os
quatro, Ismar, Raimunda, Abu Zhakaria e Fátima, foram a cavalo, enquanto os
soldados avançavam a pé pelas dunas, comandados pelo principal ajudante militar
de Ismar, um homem forte e entroncado, calvo e de olhar agreste, chamado Malik.
Após algum tempo à beira-mar,
viram umas tendas no sopé de uma escarpa amarelada, à volta das quais esvoaçavam
dezenas de estandartes encarnados. Ismar apresentou-se e dois Mantos Vermelhos
entraram na mina, tendo reaparecido pouco depois, dizendo que Orimar os
recebia, mas só a eles, os soldados não podiam entrar. Malik ainda alertou Ismar
sobre os perigos da situação, mas este decidiu avançar. A pé e preocupados, os
quatro percorreram um túnel até chegarem a uma clareira interior, onde estavam
dezenas de Mantos Vermelhos armados até aos dentes. Receoso, Abu Zhakaria levou
a mão ao alfange, colocando-se à frente de Fátima. Os malfeitores podiam, de
uma assentada, deixar Córdova e Santarém sem governantes e por isso murmurou: Ismar,
atenção.
O príncipe de Córdova também
temia uma cilada, mas a impetuosa Raimunda deu uns passos em frente e disse ao que
vinham. Os Mantos Vermelhos escutaram-na, desagradados, pois não estavam
habituados a discursos de mulheres. Quando ela terminou, nenhum dos bandidos
mascarados falou, até que se escutou uma voz e eles abriram alas. Encostado à
parede da caverna, um homem envolto em trapos
ensanguentados e com a cara
coberta de ligaduras sujas, proclamou num timbre enrouquecido: a guerra de
Lisboa não é nossa! Enojado, Abu Zhakaria reconheceu a validade do cognome a Pústula,
pois aquele corpo transbordava de pus. Porque matais os cristãos?, perguntou
Raimunda. O estranho homem respondeu: porque merecem. Em voz pausada, Raimunda
explicou-lhe que os cruzados que aí vinham também eram cristãos. Não é a mesma
coisa. Orimar, a Pústula, defendeu que a matança dos cristãos habitantes
de Lisboa era uma operação de limpeza, eles mereciam ser esmagados como
lagartos. Combater exércitos seria diferente, os Mantos Vermelhos podiam ser
dizimados por tão ferozes opositores.
Só eliminamos os que não se podem
defender, para que a nossa força aumente sempre. Se combatermos os cruzados,
deixaremos de existir, concluiu a Pústula. Ismar e Zhakaria olharam um
para o outro, perplexos. O bando de malfeitores preferia a cobardia de matar
inocentes do que a coragem de enfrentar soldados. Vamos, sugeriu Ismar. Nada há
a fazer. Mas Raimunda não pensava assim e deu mais dois passos em frente.
Estava agora muito perto da monstruosa criatura e sentia já o seu cheiro
pestilento. Disseram-me que tendes a relíquia da Terra Santa. É com a lança que
matais os cristãos, com um golpe no peito, como os romanos fizeram com Cristo
na cruz? Orimar manteve-se silencioso, enquanto desembrulhava umas peles de
animal que estavam a seus pés e retirava delas uma lança». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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