domingo, 13 de janeiro de 2019

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco. «Ocorre porém que a galeria dos transportes vai desembocar no átrio de Lavoisier, fronteiro à grande escadaria que leva aos pisos superiores. Aquele conjunto de redomas»

jdact e wikipedia

Keter
«(…) Decidi prosseguir. Saí da igreja dobrando à esquerda junto à estátua de Gramme e entrando por uma galeria. Estava na secção de caminho-de-ferro, e as miniaturas de locomotivas e vagões me pareceram tranquilos brinquedos, trechos de uma Bengodi, de uma Madurodam, de uma Disneylândia em tamanho reduzido... Agora já estava me habituando àquela alternância de angústia e confiança, terror e desencanto (não se trata de facto de um início de doença?) e pensei que as visões da igreja me haviam perturbado porque chegara a elas seduzido pelas páginas de Jacopo Belbo, que as decifrara à custa de tantos volteios enigmáticos, e que no entanto sabia fictícios. Estava num museu da técnica, dizia para mim, estás num museu da técnica, uma coisa honesta, talvez um pouco obtusa, mas num reino de mortos inofensivos, sabe como são os museus, ninguém jamais foi devorado pela Gioconda, monstro andrógino, Medusa só para estetas, e muito menos serás devorado pela máquina de Watt, que só podia espaventar os aristocratas ossiânicos e neogóticos, e por isso surge assim tão pateticamente comprometedora, todas as funções e elegâncias coríntias, manivela e capitel, caldeira e coluna, roda e tímpano. Jacopo Belbo, embora distante, estava procurando arrastar-me na trampa alucinatória que o havia perdido. É preciso, eu dizia, comportar-me como um cientista. Porventura o vulcanólogo queima-se como Empédocles? Frazer fugiria perseguido no bosque de Nemi? Ora, tu és o Sam Spade, não é mesmo? Deves explorar apenas os bas-fonds, é mister. A mulher que te conquistou deve morrer antes do fim, possivelmente pela tua mão. Adeus, Emily, tudo foi bom, mas eras um autômato sem entranhas.
Ocorre porém que a galeria dos transportes vai desembocar no átrio de Lavoisier, fronteiro à grande escadaria que leva aos pisos superiores. Aquele conjunto de redomas, aquela espécie de altar alquímico ao centro, aquela liturgia de civilizada macumba setecentista, não eram resultantes de uma disposição casual, mas antes um estratagema simbólico. Em primeiro lugar, a abundância de espelhos. Se há espelho, é estágio humano quereres ver-te nele. Mas nestes não te vês. Tu te procuras, buscas a tua posição no espaço na qual o espelho te diga estás aqui, e és tu mesmo, e acabas danando-te todo, te aborrecendo, porque os espelhos de Lavoisier, sejam côncavos ou convexos, te desiludem, escarnecem de ti: arredando-te, tu te encontras, mas depois te deslocas e te perdes. Aquele teatro catóptrico fora disposto para tolher-te toda a identidade e fazer com que te sintas inseguro do teu lugar.
Como se te dissesse: não és o Pêndulo nem estás no lugar do Pêndulo.
E te sentes não apenas inseguro de ti mas igualmente dos objectos colocados entre ti e outro espelho. É verdade que a física sabe o que é e porque isso ocorre: basta colocar um espelho côncavo que recolha os raios emanados do objecto, neste caso um alambique sobre uma panela de cobre, e o espelho reenviará os raios incidentes de modo que não vejas o objecto, bem delineado, dentro do espelho, mas tenhas dele uma intuição fantomática, evanescente, a meio-termo, e invertido, fora do espelho. Naturalmente bastará que te movas um pouco para que o efeito desvaneça. Mas, de repente, me vi, invertido noutro espelho. Insustentável.
Que pretendia dizer Lavoisier, que buscariam sugerir os registos do Conservatoire? Desde a Idade Média árabe, desde Al-Hazen, que conhecemos todas as magias dos espelhos. Valia a pena fazer a Enciclopédia, e o Século das Luzes, e a Revolução, só para afirmar que basta flectir a superfície de um espelho para se precipitar no imaginário? E no caso do espelho normal, não será igualmente ilusório este outro que te olha de dentro, condenado a um mancinismo perpétuo todas as manhãs quando te barbeias? Valeria a pena dizer-te apenas isto, nesta sala, ou não o teria dito para sugerir-te que observes de maneira distinta todo o resto, as vitrinas, os instrumentos que simulam celebrar os primórdios da física e da química iluminista? Máscara de couro para protecção do rosto nas experiências de calcinação. Mas, de facto? Será mesmo que o senhor dos círios se enfiava naquela fantasia de rato de cloaca, naquele capacete de invasor ultraterreno, apenas para não irritar os olhos? Oh, how delicate, doctor Lavoisier. Se queria estudar a teoria cinética dos gases, para que haveria de reconstituir tão minuciosamente a pequena eolípila, um canudinho sobre uma esfera que, aquecida, roda vomitando vapor, quando a primitiva eolipila foi construída por Héron de Alexandria, no tempo da Gnose, como subsídio para as estátuas falantes e outros prodígios dos sacerdotes egípcios?» In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, tradução de José Barreiros, Sicidea (Difel), 2008, ISBN 978-846-125-726-3.

Cortesia de Sicidea/Difel/JDACT