segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

As Princesas de Córdova. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Seria agora que regressaria a Córdova para nunca mais a deixar? Zaida vivera poucos anos na cidade, fora feita prisioneira dos cristãos em criança e nunca voltara»

jdact

As Princesas de Córdova. Silves, 1145
Córdova, Janeiro de 1145
«(…) Não foi necessário. À frente da piscina de mercúrio, Abu Zhakaria espantou-se com a poça de sangue que viu no chão. Martinho de Soure estava morto. Tinha o corpo trespassado por inúmeros golpes e as veias do pescoço cortadas. Demorou, mas falou!, anunciou Ismar, com um sorriso alucinado. Já sei o segredo do rei de Portugal, mas só vos conto se ficardes. Em silêncio, Abu Zhakaria examinou o seu dilema. Se permanecesse ali, arriscava a vida de Fátima, de Chamoa, de Mem, bem como a sua, pois Ibn Qasi podia não os poupar, se tomasse o Azzahrat. Mas conhecer a verdade sobre o nascimento de Afonso Henriques era também uma poderosa arma para o futuro. A vida é feita de escolhas, provocou Ismar. Que preferis? Arriscar a vida para saber um segredo antigo, que pode destruir Ibn Henrik? Ou fugir na ignorância, mas salvando a pele?
Incapaz ainda de uma decisão, Abu Zhakaria recordou as palavras amargas da velha criada de Hisn Abi Cherif, proferidas antes de ser degolada pela diabólica Raimunda.
Sois a estupidez na terra e perdereis Córdova e Santarém! Ireis morrer em Lisboa!
De súbito, ouviu-se ao longe uma trombeta e Ismar exclamou: eis que chegam as tropas de Ibn Qasi! Foi o medo que fez com que Abu Zhakaria se decidisse. Não podia perder Fátima! Correu pelos corredores do magnífico Azzahrat, enquanto ouvia nas suas costas as cínicas gargalhadas daquele príncipe de Córdova que se tornara um facínora estúpido e desesperado.
Nesse dia, queridos filhos e netos, hoje posso dizê-lo com inabalável certeza, a intriga de Compostela, esteve muito perto da impossibilidade de um esclarecimento. Morto Martinho de Soure, o fiel depositário do antigo segredo do conde Henrique era agora unicamente Ismar, e bastava este ser aniquilado por Ibn Qasi para ninguém conhecer a verdade sobre o primeiro rei de Portugal. Longe dali, em Coimbra, eu não sabia o quão próximo desse sinistro abismo estivemos. É que, pior do que a existência de uma forte suspeita, é ela nunca ser dissipada, permanecendo uma maldição irresolúvel.

Córdova, Fevereiro de 1145
As tropas de Ibn Qasi caminhavam pela famosa circular de Córdova, construída pelos romanos, aproximando-se da antiga capital do califado, onde Zaida nascera e a família reinara durante séculos. Na gaziva, a rectaguarda do exército, a princesa, sentada numa carroça e abraçada à filha Maryam, perguntou ao marido: há notícias de Sevilha?
Ibn Qasi garantiu-lhe que os aliados de Ismar não tinham comparecido. O palácio do Azzahrat estava apenas guardado por algumas centenas de homens, além de que não apresentava muralhas, pois fora construído numa época em que um ataque à capital era impensável.
Filha, esses tempos vão longe.
Seria agora que regressaria a Córdova para nunca mais a deixar? Zaida vivera poucos anos na cidade, fora feita prisioneira dos cristãos em criança e nunca voltara. E não estava certa de que hoje seria esse dia.
Filha, Ibn Wasir é um verme.
O marido explicou-lhe a estratégia: seria ele a entrar no Azzahrat, enquanto Wasir e os seus cinco mil soldados cercariam a cidade, até que esta se rendesse. Não o deixeis separar os dois exércitos, é perigoso!, avisou ela.
Ibn Qasi encolheu os ombros e resmungou que o medo era coisa de mulheres. Depois, partiu disparado, seguido pelos fiéis ajudantes, deixando a princesa sozinha, apenas na companhia das escravas do harém e de Maryam. Alá nos proteja..., murmurou Zaida. Pouco depois, ela começou a ver os contornos do Azzahrat e agitou-se. Sentia imenso receio de que Ibn Wasir os traísse, mas, agora que via o palácio, tinha ainda mais pavor de que o marido matasse Mem!
Filha, ide ter com ele!
Mandou parar a carroça e desceu, com Maryam pela mão. As escravas ainda a tentaram demover, mas ignorou-as. Montou um cavalo, colocou Maryam à sua frente na sela e lançou-se a galope pela estrada, ultrapassando as outras carroças. Quando chegou perto do palácio, o barulho das armas fê-la parar. Para a direita dela, dezenas de homens de Ibn Qasi combatiam ferozmente os soldados de Ismar. Viu ao longe o marido, em cima do cavalo, gritando ordens de alfange ao alto. Pareceu-lhe que avançava». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT