quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Os Filipes. António Borges Coelho. «Um jardim interior, rasgado por ruas com mosaicos de diferentes cores, brindava os sentidos com as suas árvores exóticas e o perfume das suas flores»

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Lisboa
«(…) A 13 de Maio de 1582, chegou a Lisboa dona Maria, imperatriz da Alemanha, irmã e sogra de Filipe, acompanhada pela filha. Vinham numa barcaça, muito maltratadas nos trajos. Pareciam roubadas dos franceses ou dos ingleses ou ciganas, por causa da caminhada desde a Alemanha. Dois meses mais tarde, já não havia quem as conhecesse, as damas fizeram-se lustrosas e limpas. De Lisboa saíram diplomatas para travar o apoio francês e inglês ao rei dom António e agentes secretos para o prender ou matar. De Lisboa ordenou Filipe as operações navais e militares contra as ilhas rebeldes dos Açores. Na cidade acompanhou as negociações secretas que levaram às tréguas com os Turcos em 1581, prorrogadas até 1587. Filipe I tinha a paixão da arquitectura e dos jardins. Do alto da colina da Alfama, a dominar a cidade e o rio, mandou refundar a igreja e o mosteiro de São Vicente de Fora. Para manter a largueza do Terreiro do Paço, fez demolir a igreja de S. Sebastião, ainda em fase de construção. Por sua ordem, começou a erguer-se o novo torreão dos Paços da Ribeira. Quadrangular, assentava numa base amuralhada com abertura de casamatas artilhadas, para tiro rasante e era dotado de um parapeito de cem pés, sobre o rio.
A vida seguiu o seu curso. Como sempre não faltaram portugueses e antonistas a atrelarem-se ao carro do vencedor. As naus e os galeões continuavam a sulcar os mares com as suas riquezas. A Companhia de Jesus tornara-se a ordem triunfante com espaço próprio de expansão da fé e de riqueza no Brasil e no Sudeste Asiático. Muitos dominicanos e franciscanos seguiram dom António e continuavam a conspirar. Lisboa não perdia o seu fascínio.

Um arco com a sua seta
O jesuíta Duarte Sande, chegado do Japão em Agosto de 1584 na embaixada a Roma dos príncipes nipónicos, escreveu ou traduziu do latim o relato da viagem, em forma de diálogo, e encheu Lisboa de luz. A cidade eleva para o céu os cânticos e orações, ensina humanidades, cura os enfermos, protege os pobres, assegura uma boa morte. E se não ouvimos o rasgar das velas dos milhares de veleiros que sulcam o Tejo, enquadrados pela Outra Margem, toca-nos a geometria e a alegria dos seus olhos. Tomem um arco com a sua seta, diz Duarte Sande. O traço do rio constitui a corda. A curva do arco começa, a ocidente, nos conventos da Esperança e de São Bento, sobe a calçada do Combro para o Bairro Alto e São Roque, desce para Valverde (actual Avenida da Liberdade), sobe para o Campo de Santana, e daí à Graça.
A seta do arco encosta-se ao Rossio e aponta para o Paço da Ribeira. No Paço tomavam assento o vice-rei, cardeal Alberto de Áustria, os tribunais e os conselhos superiores do reino: Conselho Real, Conselho da Fazenda, Mesa da Consciência e Ordens, Desembargo do Paço. No complexo de colunatas, pórticos, pátios, varandas e eirados que constituíam o Paço Real, avançava até ao mar o baluarte filipino, municiado de artilharia e de todos os engenhos de guerra. Um jardim interior, rasgado por ruas com mosaicos de diferentes cores, brindava os sentidos com as suas árvores exóticas e o perfume das suas flores.
De um e outro lado do palácio construíam-se as grandes naus da carreira da Índia, orçamentadas em 20 000 cruzados cada, e navios de toda a sorte. Não faltavam mastros, vergas, alcatrão, aparelhos. Dois elefantes, diz-me uma outra fonte, levantavam os aparelhos. Por ano consumiam 50 000 reais de erva.
O Paço abria para o Terreiro, animado com o movimento dos coches e dos cavalos com os seus nobres cavaleiros. Em frente do Chafariz d’E1-Rei, animava-se o movimento da carga e da descarga e a azáfama dos escravos. Frequentavam o porto gentes de quase toda a Europa, alemães, belgas, franceses, cântabros, asturianos, italianos, principalmente de Génova e de Veneza, para não falar dos viajantes que chegavam nas armadas da Índia e do Pacífico. Todos os anos saíam para o Oriente, o Brasil e outras colónias cerca de 3000 portugueses. Duarte Sande contou 130 igrejas abertas ao público,40 paroquiais, as restantes dos mosteiros de frades e de freiras. A Casa da Misericórdia, mãe e modelo de todas as Misericórdias do Império, dava esmolas, medicamentos, providenciava o enterro dos mortos, remia cativos e casava raparigas. Todos os anos distribuía 30 000, 40 000, às vezes 60 000 cruzados por pobres, viúvas, raparigas, menores, estrangeiros e outros que sofriam de pobreza». In António Borges Coelho, Os Filipes, Editorial Caminho, 2015, ISBN 978-972-212-740-0.

Cortesia de Caminho/JDACT