Lisboa
«(…) A 13 de Maio de 1582, chegou
a Lisboa dona Maria, imperatriz da Alemanha, irmã e sogra de Filipe,
acompanhada pela filha. Vinham numa barcaça, muito maltratadas nos trajos.
Pareciam roubadas dos franceses ou dos ingleses ou ciganas, por causa da
caminhada desde a Alemanha. Dois meses mais tarde, já não havia quem as conhecesse,
as damas fizeram-se lustrosas e limpas. De Lisboa saíram diplomatas para travar
o apoio francês e inglês ao rei dom António
e agentes secretos para o prender ou matar. De Lisboa ordenou Filipe as
operações navais e militares contra as ilhas rebeldes dos Açores. Na cidade
acompanhou as negociações secretas que levaram às tréguas com os Turcos em 1581,
prorrogadas até 1587. Filipe I tinha a paixão da arquitectura e dos jardins. Do
alto da colina da Alfama, a dominar a cidade e o rio, mandou refundar a igreja
e o mosteiro de São Vicente de Fora. Para manter a largueza do Terreiro do
Paço, fez demolir a igreja de S. Sebastião, ainda em fase de construção. Por
sua ordem, começou a erguer-se o novo torreão dos Paços da Ribeira. Quadrangular,
assentava numa base amuralhada com abertura de casamatas artilhadas, para tiro rasante
e era dotado de um parapeito de cem pés, sobre o rio.
A vida seguiu o seu curso. Como
sempre não faltaram portugueses e antonistas a atrelarem-se ao carro do vencedor.
As naus e os galeões continuavam a sulcar os mares com as suas riquezas. A
Companhia de Jesus tornara-se a ordem triunfante com espaço próprio de expansão
da fé e de riqueza no Brasil e no Sudeste Asiático. Muitos dominicanos e
franciscanos seguiram dom António e continuavam a conspirar. Lisboa não perdia
o seu fascínio.
Um arco com a sua seta
O jesuíta Duarte Sande, chegado
do Japão em Agosto de 1584 na embaixada a Roma dos príncipes nipónicos,
escreveu ou traduziu do latim o relato da viagem, em forma de diálogo, e encheu
Lisboa de luz. A cidade eleva para o céu os cânticos e orações, ensina
humanidades, cura os enfermos, protege os pobres, assegura uma boa morte. E se
não ouvimos o rasgar das velas dos milhares de veleiros que sulcam o Tejo, enquadrados
pela Outra Margem, toca-nos a geometria e a alegria dos seus olhos. Tomem um arco
com a sua seta, diz Duarte Sande. O traço do rio constitui a corda. A curva do
arco começa, a ocidente, nos conventos da Esperança e de São Bento, sobe a
calçada do Combro para o Bairro Alto e São Roque, desce para Valverde (actual
Avenida da Liberdade), sobe para o Campo de Santana, e daí à Graça.
A seta do arco encosta-se ao
Rossio e aponta para o Paço da Ribeira. No Paço tomavam assento o vice-rei,
cardeal Alberto de Áustria, os tribunais e os conselhos superiores do reino:
Conselho Real, Conselho da Fazenda, Mesa da Consciência e Ordens, Desembargo do
Paço. No complexo de colunatas, pórticos, pátios, varandas e eirados que
constituíam o Paço Real, avançava até ao mar o baluarte filipino, municiado de
artilharia e de todos os engenhos de guerra. Um jardim interior, rasgado por
ruas com mosaicos de diferentes cores, brindava os sentidos com as suas árvores
exóticas e o perfume das suas flores.
De um e outro lado do palácio
construíam-se as grandes naus da carreira da Índia, orçamentadas em 20 000
cruzados cada, e navios de toda a sorte. Não faltavam mastros, vergas, alcatrão,
aparelhos. Dois elefantes, diz-me uma outra fonte, levantavam os aparelhos. Por
ano consumiam 50 000 reais de erva.
O Paço abria para o Terreiro,
animado com o movimento dos coches e dos cavalos com os seus nobres cavaleiros.
Em frente do Chafariz d’E1-Rei, animava-se o movimento da carga e da descarga e
a azáfama dos escravos. Frequentavam o porto gentes de quase toda a Europa,
alemães, belgas, franceses, cântabros, asturianos, italianos, principalmente de
Génova e de Veneza, para não falar dos viajantes que chegavam nas armadas da
Índia e do Pacífico. Todos os anos saíam para o Oriente, o Brasil e outras
colónias cerca de 3000 portugueses. Duarte Sande contou 130 igrejas abertas ao
público,40 paroquiais, as restantes dos mosteiros de frades e de freiras. A
Casa da Misericórdia, mãe e modelo de todas as Misericórdias do Império, dava
esmolas, medicamentos, providenciava o enterro dos mortos, remia cativos e
casava raparigas. Todos os anos distribuía 30 000, 40 000, às vezes 60 000
cruzados por pobres, viúvas, raparigas, menores, estrangeiros e outros que
sofriam de pobreza». In António Borges Coelho, Os Filipes,
Editorial Caminho, 2015, ISBN 978-972-212-740-0.
Cortesia de
Caminho/JDACT