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Guimarães e Coimbra, Agosto de 1144
«(…) Sempre fora amigo dela e
queria continuar a sê-lo, sobretudo naquelas horas más, enquanto esperavam que os
respectivos amados se convencessem do erro cometido. Não havia ninguém mais
leal a Zaida do que Mem, nem ninguém mais leal a Afonso Henriques do que
Chamoa. Se na fidelidade nenhum era de fiar, na lealdade não havia quem os
ultrapassasse.
Ao cair da noite, encontraram os
templários. O grupo, formado por cerca de cinquenta homens, tinha à cabeça o
mestre Jean Raymond, que mandou parar a comitiva ao vê-los. Que desejais?, perguntou
o francês, desconfiado. Enquanto Mem explicava ao que vinham, aproximaram-se da
carroça um baixote e um gordo, que saudaram efusivamente o almocreve. Eram o
Rato e o Peida Gorda, que recordaram lutas antigas, quando Soure estava em
ruínas e Mem os ajudara a fugir de Abu Zhakaria. Foi quase há vinte anos!,
exclamou o Rato, agora um cavaleiro templário, coberto por um manto branco,
onde se via, cosida, a cruz encarnada da Ordem do Templo. Estamos velhos e
acabados, resmungou o Peida Gorda, como quem sentia o contrário do que dizia. Quando
Chamoa falou, o Rato empalideceu. Fora por saber que Ramiro se dera à minha
cunhada que ele enlouquecera de ciúmes e atacara o colega templário. Vim ver o
túmulo de Ramiro, informou ela.
Naturalmente, o Rato não queria
reviver o abismo onde caíra um dia, e foi o Peida Gorda quem o defendeu: o
nosso monge já pagou pelos seus pecados. Para evitar um tema tão melindroso,
Jean Raymond perguntou porque desejava Chamoa falar com Martinho Soure, mas ela
foi vaga. Era uma conversa confidencial, a mando de Afonso Henriques. Uma
resposta que só aumentou as dúvidas do mestre. Segundo sei, haveis sido
afastada da corte, disse este. A minha cunhada alegou que o seu estado era
provisório, até que fossem esclarecidos uns detalhes, para os quais
era necessária a palavra de
Martinho Soure. Então, o mestre dos templários mandou chamar o pároco, podiam
ir conversando enquanto a comitiva prosseguia de regresso a Soure. E foi
precisamente no momento em que o prior apareceu a cavalo, que algo de terrível
aconteceu, quando o grupo atravessava um pequeno vale, de encostas escurecidas por
muitas árvores e uma noite sem lua. Padre Martinho, haveis sido o último
confessor do conde Henrique, começara Chamoa. Ele contou-vos algo sobre
crianças trocadas... A pergunta da minha cunhada nunca terminou, pois uma flecha
espetou-se na madeira da carroça. Mem gritou a Chamoa que se escondesse junto
às pipas e às sacas, enquanto uma enorme confusão nascia no vale.
Quem são?, perguntou a minha cunhada,
aflita. Talvez fossem os tais grupos de mouros que andavam pela região a
levantar desacatos, disse Mem, mas rapidamente mudou de opinião, perante a
violência do ataque.
Morte a sorrir, toca a fugir!
Agarrou as rédeas dos jumentos e gritou-lhes.
A carroça começou a mover-se e Chamoa viu Martinho Soure dobrado, protegendo-se
com o cavalo. Gritou ao pároco para saltar para a carroça, o que este fez. Baixai
a cabeça!, berrou-lhes Mem. Perto deles e ainda a cavalo, mantinham-se o Rato e
o Peida Gorda, bem como mestre Raymond. O Rato pediu a Mem que ripostasse, pois
era muito bom com o arco, mas o almocreve não conseguia ver bem. Só dois ou
três archotes, iluminavam mal a estrada.
Sem nenhuma luz, valha-me Jesus!
De súbito, Mem escutou um tropel
na estrada, à sua frente. Alguém vinha na direcção deles em grande cavalgada e,
por um instante, convenceu-se de que eram cristãos, vindos de Coimbra para
destroçar o bando de canalhas mouros! Puro engano. Quando surgiram os primeiros
soldados, traziam turbantes na cabeça, alfanges e lanças pequenas, e o coração
de Mem parou quando, instantes depois, a cabeça do bondoso Peida Gorda saltou,
decepada com mestria.
Golpe certeiro, bom cavaleiro...
Só conhecia um homem que cortava
pescoços assim: Abu Zhakaria! O governador de Santarém apareceu à frente dele
e, instantes depois, também o Rato tombou, degolado. O último a morrer foi
mestre Jean Raymond, o que provocou forte algazarra entre os sarracenos, uma
horda ululante, à qual Mem ouviu sobrepor-se uma voz imperativa. - Poupai o
pároco, poupai o pároco! A dez passos, Mem viu surgir um outro vulto. Ismar, o
príncipe de Córdova, o marido de Raimunda, apontava o dedo para a carroça
deles!
Foi assim, queridos filhos e
netos, que aqueles dois célebres muçulmanos, Ismar e Abu Zhakaria, se cruzaram
em definitivo com a intriga de Compostela! Cumprindo o prometido ao imperador
Afonso VII, o príncipe de Córdova atacou Soure e raptou o pároco Martinho, o
último confessor do conde Henrique, o único que sabia os segredos deste. Uma
estúpic1a e infantil zanga entre Chamoa e o meu melhor amigo, talvez a vigésima
quezília de dois enamorados, tantas foram elas, fizera o nosso mundo saltar dos
eixos e enrodilhar-se no vasto universo muçulmano». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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