domingo, 20 de janeiro de 2019

O Massacre dos Templários. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «O olhar vago de Chamoa pousou no vaso de vinho à sua frente. Sentia-se tentada a abusar da bebida. Mem estava ali, podia dar-se a ele e pronto, vingava-se. Contudo, de repente estremeceu»

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Guimarães e Coimbra, Agosto de 1144
«(…) Sempre sarcástico, Gonçalo Sousa comentou: é natural, somos todos homens!
Furibunda, a minha cunhada deu meia-volta e saiu da sala, seguida por seu filho Pêro Pais e pelo amigo deste, Gualdim Pais, enquanto Afonso Henriques questionava os presentes, tentando saber do que falara Chamoa. Ninguém o elucidou e, pouco depois de sairmos também da sala, meu pai ordenou-me silêncio, prometendo-me que em breve iríamos a Soure, onde o padre Martinho nos prestaria os necessários esclarecimentos. Fiquei naturalmente intrigado. Egas Moniz e João Peculiar conheciam a intriga de Compostela, porque não a revelavam ao rei de Portugal? E porque me exigiam um mutismo cúmplice?
Distraído por estas dilacerantes dúvidas, só quatro dias depois descobri que Chamoa nos ludibriara. Em vez de subir até Tui, tinha ido para Coimbra, onde provavelmente já se encontrava. E eu sabia onde ela ia, era evidente que queria falar com Martinho Soure. Preocupado com esta inesperada iniciativa, convenci Afonso Henriques de que devíamos ajudar os templários. Tinham-nos chegado notícias de lutas próximas de Soure, os mouros andavam afoitos, era tempo de dar-lhes uma lição. Sempre enérgico e com vontade de se distrair, o rei de Portugal entusiasmou-se e marchou para o Sul no primeiro dia de Setembro, sem saber que Chamoa o antecedera em alguns dias. Logo que chegou a Coimbra, acompanhada de seu filho e de Gualdim Pais, a minha cunhada dirigiu-se à casa onde Mem vivia com as três irmãs moçárabes, Ália, Élia e Ília. Ao aproximarem-se da habitação, Pêro Pais agitou-se. A expectativa de rever as raparigas já o consumia, mas a mãe arrefeceu-lhe os ânimos. Esperai cá fora, não ides catrapiscar as moças à minha frente!
O filho permaneceu na rua com o seu amigo Gualdim, enquanto ela entrava na casa. Quando a viu, Mem mostrou-se surpreendido, não a julgava em Coimbra, e também embaraçado, pois não a voltara a ver após o ocorrido na praia do rio Arade. Mem querido, que saudades!, exclamou ela. O almocreve estremeceu: Chamoa usava a senha de Zaida, indicando ao que vinha. Atrapalhado, ofereceu-lhe de comer e beber e ouviu-a descrever o acontecido em Guimarães. Alguém nos lançou um bruxedo, a mim e ao Afonso. O olhar vago de Chamoa pousou no vaso de vinho à sua frente. Sentia-se tentada a abusar da bebida. Mem estava ali, podia dar-se a ele e pronto, vingava-se. Contudo, de repente estremeceu.
Tenho de saber a verdade!
Em poucas palavras, resumiu ao almocreve a intriga de Compostela, pedindo-lhe que a levasse ao encontro de Martinho Soure. Sempre disponível e amigo, Mem aceitou transportá-la até Soure na carroça, mas só poderiam partir ao final da tarde. Não posso abalar sem avisar as raparigas, justificou-se. Obrigada a esperar pelas moçárabes, Chamoa voltou à rua e anunciou ao filho que ia rezar à Sé. Gualdim Pais, que era muito religioso, desejou acompanhá-la, mas Pêro Pais convenceu-o a um passeio. Vamos espairecer!, defendeu o meu sobrinho. Após deixarem Chamoa na igreja principal de Coimbra, os dois caminharam peia almedina até que, numa praceta, Pêro Pais estacou. Vários comerciantes vendiam alimentos e tecidos e ele descobriu a um canto as três moçárabes, Ália, Élia e Ília. Animado, compôs a dalmática azul e aproximou-se, parando à frente de Ília, com um sorriso estampado no rosto. Crescera, era um homem feito, de ombros largos e braços longos, com uns caracóis soltos muito escuros, que raramente penteava. Ília, estais mais bela do que nunca!, exclamou. A rapariga fingiu não o reconhecer, perguntando às irmãs quem era aquele moço tão atrevido. Um pouco atrás dela, Élia mirou-o de alto a baixo e exclamou: é o filho da rainha, que matava cobrinhas no rio! Ligeiramente desdenhosa, Ália apreciou-o: está bem lançado, o menino!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT